“O trabalho produz obras maravilhosas
para os ricos, mas produz privação para
o trabalhador. Produz palácios, mas cavernas
para o trabalhador. Substitui o trabalho por
máquinas, mas remete uma parte dos
operários para um trabalho bárbaro e
faz da outra parte máquinas. Produz
espírito, mas produz idiotice, cretinismo
para o trabalhador”. (Marx, In NETTO,
José Paulo. Karl Marx: Uma biografia. São
Paulo: Boitempo, 2020, p. 556).
Nesse prosear, volto a Marx. Tenho observado um movimento consolidado de ponderáveis setores da esquerda brasileira no sentido de dar prioridade às chamadas pautas identitárias, tão essenciais como problemáticas. Essenciais porque parte da luta dos povos, capaz de capturar singularidades durante algum tempo esquecidas equivocadamente por parte do movimento comunista e da esquerda de modo geral. Problemáticas porque leva a esquerda a pensar por partes, por nichos, deixando de lado o conjunto, a luta política, a totalidade, a luta de classes no sentido mais amplo. Totalidade e luta de classes, conceitos indispensáveis para enfrentar tal discussão. Um autor imprescindível para entendê-los, se o quiserem, o grande Lukács.
Perceber a totalidade e ter uma noção clara da situação de classe, e aqui indico logo estar acontecendo, ao se dar privilégio aos nichos, às singularidades, um claro desprezo tanto pela noção de totalidade quanto pela de classe. Tem um século a notável obra de Lukács, História e Consciência de Classe. Ele dizia ser essencial, questão de vida ou morte para a classe trabalhadora, para o proletariado, nas palavras dele, “atingir a visão mais perfeitamente clara da sua situação de classe”. Nele, a situação de classe só é compreensível quando se alcança o conhecimento da sociedade no conjunto dela, não das partes apenas. A totalidade encara todos os fenômenos parciais como momentos do todo. Fundamental compreender isso. Caso não se compreenda, caso não se alcance a compreensão da totalidade da sociedade, a classe trabalhadora desempenhará apenas um papel subalterno. Dessa compreensão nasce a consciência de classe.
A predominância atual das pautas identitárias por parte da esquerda brasileira levou a um caminho pouco salutar: o quase esquecimento do mundo do trabalho, o mundo da classe trabalhadora. A consciência de classe, abandonada. Deixou-se de lado a exploração, a cruel exploração da força de trabalho em favor da discussão em torno dos nichos identitários, e eu diria em prejuízo mesmo daqueles nichos porque isoladamente pouco podem, muito embora se iludam poder. Muito poderiam se estivessem vinculados ao movimento da classe trabalhadora, se trabalhassem no sentido de reforçar tal movimento. Tal visão, ancorada nas partes, nos nichos, leva a ignorar a contradição entre capital e trabalho, sem dúvida a principal contradição da sociedade brasileira.
Quando se fala proletariado não se está acreditando no proletariado do passado, o do chão da fábrica tão somente, cada vez mais minoritário. Fala-se da força de trabalho submetida a mudanças poderosas, mas ao mesmo tempo multidão exposta à exploração cada vez mais cruel, palavra de pouco significado para o capital. Multidão geradora de valor para o capital, sem a qual ele não existiria.
Prefiro denominar as pautas chamadas identitárias de pautas democráticas, pretendendo-as parte do conjunto voltado à afirmação da proposta democrática, da utopia democrática, a rigor um projeto inconcluso na humanidade. Tais pautas contém a generosidade de acolher a diversidade humana, com toda a complexidade dela, e a democracia pode e deve necessariamente contemplá-las. Não são, no entanto, tais pautas, capazes de se afirmar de modo isolado, insista-se. Devem estar sempre vinculadas à dinâmica geral da sociedade, à totalidade circundante e necessariamente entranhadas à luta de classes de cada país.
Ressalto: aparatos superestruturais dominantes podem perfeitamente assimilar aspectos de tais pautas. Basta tal assimilação não arranhar os parâmetros básicos da acumulação capitalista. Só observar os movimentos de alguns meios de comunicação. Parecem, os meios aparentemente simpatizantes de pautas identitárias, celebrarem a luta antirracista, o movimento LGBTQI+, a luta feminista, indígena, tantas outras lutas, essenciais como já dito. Tais meios só não admitem mexer nas cláusulas pétreas do sistema – e aqui estamos falando do sistema capitalista. A exploração da mais-valia, extremada, deve continuar no novo contexto de constituição da classe trabalhadora. O neoliberalismo é o credo deles, imexível.
Tais meios podem até celebrar, e celebram, o trabalho do microempresário, por exemplo, e até o apontam como solução para o problema da pauperização e do desemprego, como caminho para a supressão da miséria, falsamente. Embelezam o mundo do chamado microempresário. Pudesse indicar uma leitura, sugeriria, para a compreensão de tal armadilha, o indispensável A Nova Razão do Mundo – Ensaio sobre a sociedade neoliberal, notável contribuição sobre como a concorrência foi levado ao extremo para o mundo do trabalho sob a forma do chamado empreendedorismo e como o trabalhador, transformado ideologicamente em empresário, culpa-se a si mesmo pela miséria e abandono.
A pauta em torno do empreendedorismo deve conjugar, penso, no plano político, a realidade desse mundo, valorizando-o como parte do universo do trabalho, e ao mesmo tempo procurando trazer consciência aos trabalhadores da exploração, da condição proletária deles, mostrando-lhes estarem situados fora do mundo burguês, inalcançável para eles. Imperdoável, para a esquerda, ignorar esse mundo do trabalho, os milhões de trabalhadores envolvidos com o trabalho por conta própria, simulacro de empresariado, como imperdoável seria cultivar a ilusão do empreendedorismo como saída estrutural para a vida da classe trabalhadora.
A perplexidade, para não perder o foco, é localizar na esquerda, hegemonicamente, um silêncio, ou um quase-silêncio, diante de um mundo do trabalho sendo velozmente, surpreendentemente alterado, profundamente modificado, com um aumento impressionante da exploração, com o agravamento da superexploração. Os sindicatos tradicionais enfrentando uma crise quase sem saída, e a discussão não existe, não aparece sequer a pergunta diária sobre como recompor o poder dos sindicatos, saber se isso é possível, ainda mais se pensarmos num país cuja industrialização recuou aos níveis dos anos 1940.
Não se vê a discussão, e não falo de exceções, em torno do desemprego em escala global, a redução assustadora de empregos. Nem se discutem as novas modalidades de trabalho, no Brasil expressas, como fenômenos diários, visuais, nos milhares de motoboys, de biciboys, arriscando-se cotidianamente para salvar tostões como empregados-empresários de aplicativos, diariamente maltratados, muitas vezes espancados como escravos. Tais trabalhadores expressam mudanças profundas no modo de ser do capitalismo em escala mundial, presentes no Brasil de forma avassaladora. Não há a pergunta sobre a natureza da classe trabalhadora, indagação necessária, pois há a consciência, ou deveria haver, de mudanças profundas na constituição dela no Brasil e em todo o mundo.
Discutir a natureza da classe trabalhadora hoje é tratar da situação de milhões, de todos aqueles no Brasil a viver do salário, a gigantesca maioria. O livro de Ricardo Antunes O Privilégio da Servidão – o novo proletariado de serviços na era digitalajuda muito a compreender isso. Primeiro porque, fundado numa perspectiva marxiana, ele sustenta ser a classe trabalhadora o centro da transformação social no mundo e naturalmente no Brasil, contrariamente aos defensores do fim do protagonismo dela. Segundo porque define a classe-que-vive-do-trabalho como a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que subsistem da venda da força de trabalho, despossuídos de meios de produção.
Tal classe trabalhadora hoje, quase por obviedade, não se restringe somente aos trabalhadores manuais diretos, mas, como ele diz, incorpora a totalidade do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo que vende sua força de trabalho como mercadoria em troca de salário. Incorpora também o conjunto dos trabalhadores improdutivos, aqueles cujas formas de trabalho são utilizadas como serviços, seja para uso público, seja para uso capitalista. Trabalho improdutivo, mas essencial à sobrevivência do capital.
Ampliando mais a compreensão de classe trabalhadora, e pensando no Brasil, ele afirma vê-la, de modo ampliado, incorporando a totalidade daqueles e daquelas que vendem força de trabalho em troca de salário, como o proletariado rural, os chamados boias-frias das regiões agroindustriais do Brasil do etanol, e não só do etanol. Incorpora também o proletariado precarizado, fabril e de serviços, que se caracteriza pelo vínculo de trabalho temporário, em expansão na totalidade do mundo do capital.
Houve tempo de certezas. Quando a visão marxiana tinha no proletariado fabril, na classe operária, o sujeito coletivo capaz de levar à frente a revolução socialista. Aquele sujeito, nos termos do final do século 19 até perto do final do século 20, não existe mais. Não há mais propensão ao Assalto ao Palácio de Inverno. Há outra configuração de classes entre os trabalhadores, como estamos vendo. É dessa configuração a possibilidade de transformações no mundo, chamemos revolução ou sejamos levados a dar outro nome.
Essa é a discussão mais importante nos dias atuais: a do mundo do trabalho e de como esse mundo, no conjunto, pode propiciar mudanças para melhor no modo de existir sobre a terra. Os revolucionários, se quisermos podemos chamar de ativistas sociais ou qualquer outro nome, devem perguntar-se como contribuir, na relação política com os trabalhadores realmente existentes, num diálogo efetivo, para a caminhada em direção a uma sociedade democrática e socialista. Nessa caminhada, cabem, por obviedade, todas as pautas democráticas, se quiserem, identitárias, enfeixadas pela luta política geral, pela totalidade do movimento de transformação do país e do mundo.
Até porque todas e todos os integrantes dos chamados movimentos identitários compõem rigorosamente o mundo da classe trabalhadora, e sem ela, não custa repetir, sem o envolvimento profundo na luta de tal classe, não há futuro para as pautas democráticas. A luta atomizada, por nichos, pode dar ilusões de vitórias, e dão. E sempre serão ilusões, nada mais. Continua de pé a ideia, renovada, em outras circunstâncias, como haveria de ser depois de tanta história percorrida, mesmo com as mudanças profundas na constituição de homens e mulheres a viver da venda da força de trabalho:
“Proletários de todo o mundo, uni-vos”.
Referências
ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão: O novo proletariado de serviços na era digital / Ricardo Antunes. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2018.
DARDOT, Pierre. A Nova Razão do Mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal, Pierre Dardot e Christian Laval; tradução Mariana Echalar. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016.
LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe: Estudos de dialética marxista.Georg Lukács; tradução Telma Costa; revisão Manuel A. Resende e Carlos Cruz. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elfos Ed.; Porto, Portugal: Publicações Escorpião, 1989.
NETTO, José Paulo. Karl Marx: uma biografia. José Paulo Netto. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2020.
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), entre outros