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A PEC foi concebida para desorganizar o serviço público, punir os atuais e submeter os futuros servidores públicos a regras draconianas de gestão de pessoal

Desde o golpe que resultou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff, os trabalhadores e servidores públicos têm sido alvo de uma investida jamais vista em termos de desregulamentação, flexibilização ou supressão de direitos.

Ali nasceu um movimento articulado que envolveu as forças de mercado e os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – voltado para a redução da presença do Estado no provimento de bens e serviços, para a desregulamentação de direitos e a regulamentação de restrições, e para a privatização dos serviços públicos.

No curso espaço de tempo do governo Temer, sob o guarda-chuva da agenda “Ponte para o Futuro”, esse movimento conseguiu aprovar três reformas estruturais: 1) a reforma trabalhista; 2) a terceirização generalizada; e 3) a Emenda Constitucional 95, do teto de gasto, além de ter criado as condições para viabilizar a reforma da Previdência.

Na sequência vem o governo Bolsonaro que aprofunda essa agenda em bases neoliberais, propondo o chamado “Plano Mais Brasil”, que incluiu: 1) a PEC 6/2019 (reforma da Previdência); 2) a PEC 186/19 (PEC emergencial ou da regra de ouro); 3) a PEC 188/19 (pacto federativo); e 4) a PEC 32/2020 (reforma administrativa).

A reforma administrativa, portanto, vem num contexto de desmonte e tem como pano de fundo uma série de motivações que não guardam nenhuma relação com a qualidade do serviço público. São basicamente de cunho político-ideológico, para não dizer persecutório, e liberal-fiscal. Embora o discurso seja “a promoção, no âmbito do setor público, de maior eficiência na gestão dos recursos humanos e na provisão de serviços à sociedade, e não a redução das despesas de pessoal”1, na verdade o que se vê é exatamente o oposto disso, ou seja, uma proposta que não somente desestrutura a administração e o serviço público, como viabiliza a redução da despesa.

O diagnóstico governamental, do ponto de vista ideológico, é de que o Estado: 1) é inchado em termos de pessoal; 2) é ineficiente em termos de desempenho institucional; 3) é contrário ao mercado e ao capitalismo; e 4) está capturado ou ocupado pela esquerda/comunistas.

Sob o ponto de vista liberal-fiscal, a visão governamental, igualmente, é de que o Estado: 1) é perdulário e gasta mal; 2) seus servidores ganham muito e trabalham pouco; e 3) está associado à corrupção. É uma campanha permanente de desqualificação do Estado e suas instituições, que retoma o mesmo discurso das reformas de Collor (1990) e Fernando Henrique Cardoso (1995).

E, em nome do combate à corrupção e do “desaparelhamento” do Estado, bem como da defesa do controle e do equilíbrio das contas públicas, é que o governo propõe: 1) reduzir a máquina pública; 2) diminuir a presença do Estado no fornecimento de bens, e na prestação de serviços e programas sociais; 3) reduzir o número de servidores, mediante a transferência de atribuições da União para os entes subnacionais ou para as Organizações Sociais (OS) ou Serviços Sociais Autônomos, além de automatizar e digitalizar os serviços; 4) reduzir a regulação, o controle e a fiscalização; e 5) expurgar a esquerda do governo.

Nessa perspectiva, a PEC foi concebida para desorganizar o serviço público, punir os atuais e submeter os futuros servidores públicos a regras draconianas de gestão de pessoal. Ela propõe: a) mudanças nos princípios da administração pública; b) inclusão de vínculo público em substituição ao conceito de cargos e funções públicas; c) criação de cargo com vínculo por prazo indeterminado, com cargos sem estabilidade e cargos com estabilidade, no caso de cargo típico de Estado; d) criação de “vínculo de experiência” com desempenho satisfatório, que pode ser de um ou dois anos, entre a aprovação preliminar em concurso e a nomeação, seguido de estágio probatório de um ano.

Entre outros aspectos, acaba com o regime jurídico único, acaba com a estabilidade para todos os cargos que não sejam considerados típicos de Estado, e institui três regimes estatutários: um por prazo indeterminado, um por prazo determinado, e um para cargos de liderança e assessoramento. Para os cargos com prazo indeterminado, o texto prevê os cargos típicos de Estado, que terão estabilidade, e os demais, sem estabilidade.

Sobre as formas de ingresso, a PEC prevê a via do concurso público, de provas ou de provas e título, para os cargos por prazo indeterminado, e de processo seletivo simplificado para os cargos por prazo determinado, além de livre nomeação para os cargos de liderança e de assessoramento, que substituem as funções comissões e os cargos de livre provimento de chefia, direção e assessoramento.

Dessa forma, quem for aprovado em concurso de provas ou provas e títulos, assume como trainee por um ano, no caso de cargo em geral, e por dois anos, em caso de cargo típico de Estado, devendo estar entre os mais bem avaliados para passar para a próxima fase, do estágio probatório de um ano, durante o qual também deverá ter “desempenho suficiente”. E, após esse prazo, apenas os cargos típicos de Estado terão estabilidade, mas com ampliação das possibilidades de demissão.

A dispensa de ocupante de cargo típico de Estado ocorrerá mediante: a) decisão judicial transitado em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, ainda que caiba recurso; b) processo administrativo, com ampla defesa, como já é previsto; c) avaliação periódica de desempenho, mas disciplinada em lei ordinária, e não mais lei complementar.

Os Cargos de Liderança e Assessoramento, que substituem as funções de confiança e cargos de livre provimento, ganham novas atribuições, mas com expressiva ampliação de seu emprego. Desaparece a previsão de que cargos e funções sejam reservados a servidores de carreira, e esses cargos de Liderança e Assessoramento poderão alcançar atividades com responsabilidades estratégicas, gerencias ou técnicas, que inclui áreas com poder de polícia, como fiscalização tributária, trabalhista, ambiental, entre outras. Desde a EC 19/98, cargos e funções comissionadas são restritos a atividades de direção, chefia e assessoramento.

Também serão revogadas a previsão de planos de carreira na administração pública, a obrigatoriedade de que a União e os estados e o Distrito Federal mantenham escolas de governo para a qualificação de servidores, e as regras básicas sobre o sistema remuneratório.

A PEC remete para a lei complementar a competência para disciplinar: 1) gestão de pessoas; 2) política remuneratória e de benefícios; 3) ocupação de cargo de liderança e assessoramento; 4) organização da força de trabalho no serviço público; 5) progressão e promoção funcionais; 6) desenvolvimento e capacitação de servidores; e 7) duração máxima da jornada para fins de acumulação de atividades remuneradas.

Essa lei complementar, porém, não será aplicada aos membros de instituições e carreiras disciplinadas por lei complementar específica prevista na Constituição2.

Além da lei complementar, vários pontos serão regulamentados em lei ordinária pelos entes, como: os cinco tipos de “vínculo” a serem disciplinados: experiência; por prazo indeterminado sem estabilidade; por prazo indeterminado, com estabilidade (cargos típicos de Estado); por prazo determinado; e de liderança e assessoramento.

As contratações temporárias são ampliadas, podendo acontecer por: 1) necessidade temporária decorrente de calamidade, de emergência, de paralisação de atividades essenciais ou de acúmulo transitório de serviço; 2) atividades, projetos ou necessidades de caráter temporário ou sazonal, com indicação expressa da duração dos contratos; e 3) atividades ou procedimentos sob demanda.

Além disso, a PEC permite contratos de gestão como porta de entrada ilimitada no serviço público, permitindo que União, estados, Distrito Federal e municípios, possam na forma da lei firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicas e privadas, para a execução de serviços púbicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira.

Por fim, extingue uma série de direitos, porém exclui os militares, os magistrados e membros do Ministério Público: licença-prêmio; reajuste retroativo; adicional por tempo de serviço; adicional de indenização por substituição não efetiva; redução de jornada sem redução de salário; progressão e promoção automática ou apenas por tempo de serviço; incorporação ao salário de valores referentes ao exercício de cargos e funções; férias superiores a 30 dias etc.

A PEC amplia os poderes do presidente da República para dispor, por decreto, sobre a extinção de cargos, transformações, fusões e extinções de órgãos ou entidades, inclusive autarquias, a criação de órgãos sem aumento de despesa, além de alterações de carreiras e cargos, exceto cargos típicos de Estado.    Ou seja, amplia o espaço para perseguição política e extinção de cargos, carreiras ou até órgãos cuja atuação desagrade ao governo de plantão, sem a necessidade do aval do Legislativo. Isso representa uma carta em branco para a reorganização da administração pública a partir de estudos do Ministério da Economia, sem transparência e diálogo e com base nas recomendações do Banco Mundial, com o objetivo de aumentar mobilidade e transversalidade dos cargos e carreiras e a alteração de suas atribuições; reduzir salário e retardar crescimento na carreira; eliminar ou fundir carreira ou mesmo dá tratamento diferenciado a cargos de uma carreira com mais de um cargo. Trata-se do retorno a um modelo altamente centralizador e autoritário de gestão, já vivenciado no Estado Novo de Vargas, quando criou o Dasp, e na ditadura militar, após a edição do Decreto-Lei 200/67.

Na propaganda oficial, o governo diz que os atuais servidores não serão atingidos, mas serão fortemente afetados nas seguintes dimensões:

  • Estabilidade – passará a poder ser demitido, além de por decisão por trânsito em julgamento, por decisão judicial colegiada e por insuficiência de desempenho, cuja regulamentação será feito por lei ordinária ou MP e não mais por lei complementar;
  • Proíbe a progressão e promoção com base apenas em tempo de serviço, ficando condicionada, em caráter obrigatório, à avaliação de desempenho;
  • Perde o direito de ocupar cargo de livre provimento, pois estão sendo eliminadas as cotas de cargos que deveriam ser ocupados apenas por servidor de carreira;
  • Permite a destituição de comissionados por motivação político-partidária, mesmo que o servidor seja concursado;
  • Amplia o escopo de atuação dos cargos de livre provimento, agora batizados de “liderança” e “assessoramento” para funções estratégicas, técnicas e gerenciais;
  • O servidor enquadrado como cargo típico de Estado não poderá realizar nenhuma outra atividade remunerada, nem mesmo acumular cargos público, exceto de professor;
  • Acaba com o RJU;
  • Atribui plenos poderes ao presidente para, por decreto, extinguir cargos, planos de carreiras, colocar servidor em disponibilidade e extinguir órgãos, inclusive autarquias;
  • Mesmo não havendo redução salarial, a referência remuneratória passará a ser do novo servidor, cujo salário de ingresso será bem menor, criando constrangimento ao antigo servidor e legitimando o congelamento salarial em longo prazo;
  • Quem se licenciar para exercer mandato sindical, político, estudar, acompanhar parente doente perderá o direito de receber retribuição de posto comissionado, gratificações de exercício, bônus, honorários, parcelas indenizatórias, etc.

A proposta, como se vê, representa um verdadeiro desmonte dos serviços e dos direitos dos servidores públicos. É a “granada” no bolso do servidor, que Paulo Guedes mencionou na fatídica reunião de abril de 2020.

É preciso ficar de olho nas PECs do Senado e também na reforma administrativa na Câmara, pois ambas pretendem promover uma grande reforma do Estado. O objetivo é substituir a prestação de serviço por distribuição de voucher à população carente para comprar bens ou serviços no setor privado, convertendo direitos universais e a prestação do serviço público em favor dos governantes, e o servidor, de agente do Estado, em refém do governo de turno.

Eis aí o retrato da reforma.

 

Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, consultor e analista político, diretor de Documentação do Diap, mestrando em Políticas Públicas e Governo pela FGV/DF, e sócio das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”