Colunas | Opinião

“Que diabo os bolcheviques estão fazendo?”, inquietava-se. Tinha por aquela revolução uma admiração incontida. Mas sempre abominou o caminho da supressão das liberdades

“A tarefa histórica que cabe ao proletariado,

uma vez no poder, é de criar a democracia

socialista em lugar da democracia burguesa

e não de suprimir toda democracia. Mas a

democracia socialista não começa somente

na terra prometida, quando já tiver sido criada

a infraestrutura da economia socialista, como

um presente de Natal para o bom povo, que,

nesse intervalo, sustentou fielmente o punhado

de ditadores socialistas. A democracia socialista

começa com a destruição da dominação de classe

e a tomada do poder pelo partido socialista. Ela

não é outra coisa senão a ditadura do proletariado”.

(VARES, Luiz Pilla. Rosa, a vermelha: vida e obra de

Rosa Luxemburgo. São Paulo: Busca Vida, 1988, 223/224.).

Rosa Luxemburgo, cuja herança tenho revisitado ultimamente, produz em mim um inegável fascínio. Volta e meia, e não sei por quê, retorno a ela, sem explicações racionais. Mal não me fará, certamente. Mais: pudesse, e aconselharia os interessados na atuação desassombrada de uma revolucionária marxista a mergulharem nessa busca, cujo exercício não será rápido.

Mulher, judia, coxa, comunista.

Sob todo esse peso, essa montanha de preconceitos, afirmou-se em meio a revolucionários e teóricos cujas heranças perduram até os dias atuais, entre os quais Lênin, Kautsky, Trotsky. Sempre lembro disso quando falo nela. Viveu intensamente. Revolução, sua paixão. E muitos amores. Amava a vida. Nunca escondeu seus sentimentos, sofrimentos.

Estava presa em 1918. Presa e angustiada. Não só porque prisão por si só traz angústia. Gramsci, não sei se é verdade, dizia: das observações dele, os mais calmos na reclusão eram os camponeses. Os intelectuais sofriam muito. Talvez. Ela, por presa, e pelas suas preocupações com os rumos da Revolução Russa, encontrava-se particularmente angustiada.

“Que diabo os bolcheviques estão fazendo?” Inquietava-se.

Tinha por eles, por aquela revolução, um imenso carinho, admiração incontida. Haviam assaltado os céus, como diria Marx ao se referir aos revolucionários da Comuna de Paris.

Mas que diabos estavam fazendo?

Por que suprimir as liberdades daquele jeito? Sempre abominou o caminho da supressão das liberdades. Colocou no papel suas preocupações, não resistiu. Sofrendo bastante, mas resolveu escrever. Um amigo, revolucionário, advogado, dirigente comunista, e com quem tivera relação amorosa, Paul Levi a visita. Queria demovê-la de publicar o texto, sobre o qual já ouvira falar. Ela queria a opinião dele.

Visita na prisão

Era setembro de 1918, verão, quando ele a visita na prisão de Breslau. Ela vai falando, argumentando, defendendo o texto. Era uma enorme ousadia refletir sobre a mais notável experiência revolucionária do mundo. Muita coragem, muita ousadia política e teórica, sobretudo se o texto comportasse críticas, e foi essencialmente crítico, pouco se lhe dando tivesse a enfrentá-la monstros sagrados como Lênin e Trotsky.

Explica: no começo do texto, cujo título era exatamente “A Revolução Russa”, faz uma celebração da proeza dos bolcheviques, da Revolução de Outubro de 1917, qualificando-a como o fato mais considerável da guerra mundial. Ressalta, nesse início, ter sido o partido de Lênin o único a compreender o dever de um partido verdadeiramente revolucionário. Com sua palavra de ordem “Todo o poder aos operários e camponeses”, assegurou a marcha e o triunfo da revolução. A partir dessa introdução vai pra cima dos bolcheviques. Critica duramente a distribuição de terras aos camponeses, por acreditar medida tendente a fortalecer uma nova propriedade privada, não à propriedade social.

A reforma agrária leninista cria para o socialismo, nos campos, uma nova e poderosa camada de inimigos, cuja resistência será bem mais perigosa e obstinada do que a da aristocracia latifundiária. Combate sem meios-termos a posição de Lênin quanto às nacionalidades, defensor do direito dos povos de disporem de si mesmos. Serão trágicas as consequências dessa palavra de ordem em cujos espinhos os bolcheviques deveriam se prender e se ferir até sangrar – advertência dela no texto.

A questão democrática

A partir daqui, inicia-se o núcleo central da divergência de Rosa com os bolcheviques: a questão democrática. Primeiro, trata da dissolução da Assembleia Constituinte. Lênin e Trotsky haviam sido ardorosos defensores da Constituinte até a tomada do poder em outubro de 1917. E no dia seguinte à Revolução de Outubro, o primeiro ato de Lênin foi dissolvê-la. Que a dissolvesse e convocasse outra, esse o caminho, assim ela pensava. Chegar à negação do valor de toda representação popular surgida de eleições gerais em período de revolução, um equívoco completo.

Dá uma aula no texto sobre os parlamentos e a experiência histórica. A opinião popular irriga constantemente os corpos representativos, penetra-os, dirige-os. Os parlamentos se transformam quando a cólera ruge nas fábricas, nas oficinas e nas ruas. Sentem a pressão e cedem, avançam. É da história isso. O pesado mecanismo das instituições democráticas, como dissera Trotsky para justificar a dissolução da Constituinte, encontra, diz a ousada Rosa, um corretivo poderoso exatamente no movimento vivo e na pressão contínua das massas.

Não se intimida diante dos monstros sagrados. Diz, sem relutar: o remédio inventado por Lênin e Trostky, suprimir a democracia em geral, é pior do que o mal que julgaram curar.

Tal remédio obstruiu a única fonte viva da qual saem os meios de corrigir as insuficiências congênitas das instituições sociais. Essa fonte é a vida política ativa, livre, enérgica, das grandes massas populares. Defende firmemente o sufrágio universal, e não um sistema que privilegie o voto apenas aos sovietes. Como privar de direitos as camadas crescentes da pequena burguesia e do proletariado? – pergunta, indignada.

A questão democrática é de fundo, para ela.

Opõe-se à supressão das principais garantias democráticas de uma vida pública sã e da atividade política das massas operárias: a liberdade de imprensa, de associação e de reunião, totalmente suprimida para todos os adversários do governo dos sovietes. A argumentação de Trostsky sobre o peso dos corpos democráticos eleitos é completamente insuficiente para justificar a supressão desses direitos. Rosa considera ser um fato absolutamente incontestável que sem liberdade ilimitada de imprensa, sem inteira liberdade de reunião e associação, não há lugar para espaço político das grandes massas populares.

Liberdade para os que pensam diferente

Os revolucionários russos, seus principais dirigentes, ao suprimirem toda vida pública, obstruíram a fonte essencial da experiência política das massas. E as tarefas a serem enfrentadas pela revolução, gigantescas, exigiriam intensa educação política das massas, acumulação de experiências, impossíveis de se desenvolverem sem liberdade política.

Liberdade somente para os partidários do governo, para os membros de um partido, por mais numerosos que sejam, não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade daquele que pensa de modo diferente. Não por fanatismo de justiça, mas porque tudo quanto há de instrutivo, de salutar e purificante na liberdade política perde sua eficácia quando a liberdade torna-se um privilégio.

Essa visão correu mundo depois, um libelo a favor da democracia, da liberdade.

O socialismo é um produto histórico, nascido da escola da experiência, no momento das realizações da marcha viva da história. Não pode ser outorgado, introduzido por decreto. Só uma vida intensa, inteiramente livre, realiza milhares de formas e improvisações novas, recebe uma força criadora e corrige ela mesma suas próprias falhas – expõe ela no texto sua visão. Da construção do socialismo, todo o povo deve participar. De outro modo é decretado, outorgado por uma dezena de intelectuais.

Defende o controle público como absolutamente indispensável. Senão, tudo fica no círculo dos funcionários do novo governo. O único caminho é a própria escola da vida pública, a democracia mais ampla e ilimitada, a opinião pública – ela insiste. Sem eleições gerais, sem liberdade ilimitada de imprensa e de reunião, sem luta livre entre as opiniões, a vida morre em todas as instituições públicas, torna-se uma vida aparente. A burocracia resta como único elemento ativo.

Passo a passo, a vida pública adormece. Algumas dezenas de chefes de uma energia infatigável e de um idealismo sem limites dirigem o governo. Os que governam de fato são uma dezena de cabeças eminentes. Uma elite da classe operária é convocada de tempo em tempo para reuniões com o fim de aplaudir os discursos dos chefes e votar unanimemente as resoluções apresentadas.

Ditadura jacobina

Um governo de grupo. Uma ditadura... é verdade. Não apenas do proletariado – diz Rosa.

Mas, de um punhado de figurões. Uma ditadura no sentido burguês – ela diz, implacável.

No sentido da dominação jacobina.

Profeticamente, diz das consequências de uma situação dessas: um tal estado de coisas deve provocar necessariamente a barbarização da vida pública, atentados, fuzilamento de presos etc...

A democracia socialista começa com a destruição da dominação de classe e a tomado do poder pelo partido socialista. Não é outra coisa senão a ditadura do proletariado. Concorda. Rosa não é uma liberal-burguesa. Mas tal ditadura consiste na maneira de aplicar a democracia, não em sua abolição. Deve ser obra da classe, e não de uma reduzida minoria dirigente, em nome da classe.

Paul Levi, depois de muito ouvir, faz de tudo no sentido de convencê-la a não tornar público o texto. Fora visitá-la com esse objetivo. Um texto como aquele não era do interesse da revolução. Seria juntar-se aos inimigos. Rosa cede, a contragosto. Em nome da Revolução.

Rosa morreu no início de 1919. Contamos aqui as circunstâncias da trágica morte dela. Suas obras completas deveriam ser publicadas, determinação de Moscou. Lênin a chamava “a águia da revolução”, não obstante tivesse com ela divergências consideráveis. Que se publicassem as obras completas, determinou. Mas, com uma ressalva clara: à exceção do texto sobre a Revolução Russa, cujas instruções, trazidas por Clara Zetkin à Alemanha eram de que fosse queimado.

Einstein e Paul Levi

Clara, então, teve o cuidado de escrever a Paul Levi informando da decisão de Lênin, pedindo que se abstivesse de publicar o manuscrito, cuja cópia ele tinha em mãos. Ela enviara o texto a ele, após uma revisão e logo depois da visita na prisão, dizendo do apreço dado à opinião dele. Afirmara: “se conseguir convencer apenas você, não terei trabalhado em vão”. Clara Zetkin alegava uma suposta autocrítica de Rosa em relação às críticas à Revolução Russa. Teria mudado de ideia antes de morrer.

Levi se agigantou, fez questão de honrar a memória de Rosa, por admiração e, quem sabe, por amor. Mudara de ideia. Não defendia mais o silêncio diante dos erros da Revolução Russa. E fazia questão de reverenciar a memória de Rosa. Por tudo. Não aceitou a imposição de Lênin, nem a recomendação de Clara. Conhecia as divergências de Rosa com Lênin, manifestadas, segundo ele, por 20 anos. Rosa nunca recuou de suas críticas, não obstante ressaltasse a importância da iniciativa dos bolcheviques de tomar o poder.

Levi pergunta a Clara: será que estivemos certos em ficar em silêncio por tanto tempo?

O texto censurado por Lênin, condenado ao fogo, era apenas a continuidade de uma reflexão de anos, no entendimento de Paul Levi. Para ele, a atitude de Clara, “da querida camarada Clara”, causava a Rosa tanto prejuízo quanto Lênin, ou mais até, ao tentar reduzir as opiniões dela a um mal entendido, a informações erradas, ou simplesmente ao seu mau humor.

Levi seguiria em frente. Enfrentaria os monstros sagrados, mesmo o maior deles, o grande herói da Revolução Russa. Em nome de Rosa.

Publicar sua obra e deixar de lado “A Revolução Russa” significaria renunciar a qualquer crítica, de uma vez por todas. E implicava renunciar, também, ao rumo apontado por Rosa enquanto ainda viva, rumo justificado pela história. E por último, isso representava um golpe profundo na visão de mundo “maravilhosamente completa” deixada por ela.

Não. Ele publicaria o texto em 1922. Era advogado. Nunca se conformou com o fato de ninguém ser punido pelo assassinato de Rosa.

Como a prescrição pelo assassinato dela ocorreria em 1928, lançou-se numa encarniçada e memorável batalha pela condenação do promotor Paul Jorns, cujo crime seria o do acobertamento dos assassinatos de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, de que falamos aqui em outro texto. Conseguiu provar a supressão de provas pelo promotor em ambos os assassinatos, e Jorns foi declarado culpado.

Albert Einstein, diante da atitude de Levi, escreveu-lhe dizendo ser animador ver um homem inteiramente só e sem nenhum apoio senão seu amor à justiça conseguir aquele feito – lembrou-se do caso Dreyfus e da batalha de Zola, fez esse paralelo. Para ele, Levi figurava “entre os melhores de nós, judeus”.

“Parte da justiça social do Velho Testamento ainda está viva”, completou Einstein.

Celebrava Rosa e Levi. A admiração e o amor de Levi. Seu senso de justiça. E celebrava também a vida de uma revolucionária.

Pronta sempre a defender as melhores causas da humanidade, sem deixar de criticar os erros até daqueles a quem admirava profundamente.

Eterna Rosa.

 

Referências bibliográficas

ETTINGER, Elzbieta. Rosa Luxemburgo: uma vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989. Para Paul Levi e Rosa, p. 241-242, encontro na prisão; Clara Zetkin e Paul Levi, p. 244; Paul Levi e Einstein, p. 268.

VARES, Luiz Pilla. Rosa, a Vermelha: vida e obra de Rosa Luxemburgo. São Paulo: Busca Vida, 1988. Sobretudo para o texto “A Revolução Russa”, p. 193-226.

 

 

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros