Colunas | Opinião

Facínoras foram a Brasília com objetivos claros: atacar os prédios das principais instituições do país. A PM do Distrito Federal, orientada, confraternizava com os bolsonaristas

Escrever a quente, numa conjuntura tão explosiva, literalmente explosiva, sempre problemático. Risco de tropeçar, grande. Mas urge escrever.

Lula agiu rápido e determinou intervenção na Segurança do Distrito Federal.

Domingo evidenciou, primeiro, a falta de um dispositivo de força capaz de conter com rapidez a ação dos criminosos financiados por empresários bolsonaristas, tão bandidos quanto os primeiros.

Os golpistas conscientemente dirigiram-se ao coração do poder político e atingiram o Congresso Nacional, o STF e o Palácio do Planalto.

Investiram contra as principais instituições do Estado de Direito.

Pretendiam instalar o caos no principal centro de poder do país de modo a construir argumentos para o golpe, a ser desencadeado com a intervenção das Forças Armadas, e dessa pretensão os golpistas jamais fizeram segredo.

Nossas Forças Armadas, segredo pra ninguém, têm uma história de pouco compromisso com a democracia, e não custam ser tentadas a outra aventura golpista se a oportunidade surgir, embora creio difícil isso acontecer especialmente devido à conjuntura internacional.

Desta vez, os bolsonaristas foram mais ousados, evidenciando a existência de esquemas golpistas densos, e muito dinheiro envolvido, financiamento já evidente com a existência dos tantos acampamentos tolerados e apoiados na frente de quartéis, e agora, com a chegada de tantos ônibus e tanta gente a Brasília.

Essa gente, esses facínoras foram a Brasília de caso pensado, com objetivos claros: atacar os prédios das principais instituições do país. Incrível, incrível, mas encontraram caminho livre. A PM do Distrito Federal, orientada, confraternizava com os bolsonaristas, como a dizer sejam bem-vindos.

Não sei as razões de a chamada Força Nacional ter se mantido paralisada enquanto a ofensiva da malta bolsonarista acontecia de modo violento, justo ela anunciada pelo ministro Flávio Dino como força a conter qualquer veleidade golpista.  

Por algumas poucas horas, os golpistas avançavam sobre as instituições, assim como num alegre passeio, com uma Brasília ofertando-se a eles, de portas abertas.

As instituições desprotegidas, numa espécie de reedição do crime de Trump nos EUA.

A imprensa, no primeiro momento, manchetava como se fossem “ação de radicais”, não movimentação golpista de bolsonaristas. Com o passar das horas, foi modificando o teor, e ao menos uma parte dela passou a dar nome aos bois, chamá-los então de golpistas bolsonaristas.

Não gostei do que vi no primeiro momento. O poder político, todo ele, inerte diante de uma gangue bolsonarista.

Os derrotados numa eleição limpa, querendo ganhar o jogo na força bruta e, volto, encontrando o caminho livre no primeiro momento graças à conivência, e talvez conivência seja palavra fraca, do governo do Distrito Federal.

A intervenção na Segurança do Distrito Federal pode fazer Brasília voltar à normalidade.

Trata-se de reprimir com vigor qualquer manifestação de golpistas bolsonaristas. São elementos à margem da lei, e o Estado de Direito não pode conciliar com eles.

Penso, como acréscimo a essa discussão sobre o Estado de Direito, na necessidade de uma discussão sobre a movimentação dos movimentos sociais.

Democracia não é apenas o regime de eleições. Qualquer governo se sustenta a partir de classes sociais, cujas mobilizações devem garantir a existência dele.

Lula conseguiu reunir em torno de si um vasto leque de forças, da esquerda ao centro democrático. Governar, depende também, em grande medida, do apoio ou ausência de apoio de forças sociais, e esse episódio cujos desdobramentos ainda estão em andamento é exemplar na demonstração disso.

A mim, confesso, deu uma angústia danada ver apenas as gangues bolsonaristas nas ruas de Brasília. Equivocadamente, com meu pensamento desejoso, eu esperava a emergência rápida de milhares de pessoas nas ruas da capital federal, a defender o governo eleito. Quase juvenil, meu desejo, sei disso.

A conjuntura, já larga conjuntura, levou a esquerda e as forças democráticas de modo geral a afastar-se das ruas, ou ao menos diminuir o impacto da presença delas na luta política das praças.

Como se a luta de classes tivesse tirado férias, e a luta de classes jamais tira férias.

Sei: há tantas outra formas de manifestação dessa luta. A luta continua, sei disso.

Creio, no entanto, indispensável voltarmos, todos os partidários da democracia, a nos organizar para voltar a ocupar as ruas quando necessário de modo a garantir a sobrevivência do governo Lula e a execução das políticas anunciadas, especialmente as destinadas a combater a fome e a desigualdade.

A esquerda e todas as demais forças democráticas não podem querer o confronto pelo confronto. Mas não podem ser figuras menores quando a conjuntura exigir. Não podem deixar de ocupar a cena política e os embates de rua quando a situação chamá-las

Claro, não basta uma palavra de ordem. Será necessário um processo político-cultural a nos reanimar, a nos acicatar, a nos lembrar do dito antigo: a história sempre se dá a partir da luta de classes. Nas ruas ou fora delas.

Nem se diga ser a esquerda, e aí falo somente dela, avessa à luta institucional. Tem sido ela a principal defensora da democracia no Brasil, do Estado de Direito. Ser democrática, partidária da democracia, não pode levá-la a esquecer antigas lições, de modo a não ser surpreendida, como o foi domingo, de modo a não ser pega de calças nas mãos.

O governo Lula vai encontrar imensas dificuldades. Pelo legado material, pelo processo destrutivo desenvolvido pelo governo anterior. E também pela imensa devastação político-ideológica, cultural, a ponto de grande parte do país ter consolidado valores profundamente conservadores, com os quais teremos de conviver, alguns tranquilamente, outros a ser combatidos, de modo democrático.

O governo democrático deverá ser apoiado também nas ruas, na efervescência das ruas, numa colorida presença popular.

Essa presença popular de rua pode acontecer de não ser apenas um baile de valsas, como não o seria se ocupássemos as ruas de Brasília no domingo, dia 8 de janeiro, poucos dias após a linda posse do presidente Lula.

Não queremos confronto, mas às vezes ele é inevitável. É a tal luta de classes, inafastável.

Para diminuir as chances de confronto, necessário que os sindicatos, os movimentos sociais de toda natureza estejam dizendo presente de maneira permanente, mantendo um ritmo constante de organização e mobilização.

Domingo nos convocou.

Evidenciou um perigoso vazio, não só do governo, mas também do movimento popular.

O vazio do governo, manifestado pela ausência de força militar sob seu comando para reprimir os bolsonaristas com mão de ferro. O do movimento sindical e popular, pela incapacidade de uma reação rápida a possibilitar a presença de milhares de pessoas nas ruas defendendo a democracia, virulentamente atacada pelos golpistas bolsonaristas.

Olhar a história correndo à nossa frente é sempre bom. Resta olharmos e tirarmos lições dos acontecimentos. Como os desse domingo.

As ruas também são nossas. Não quero ouvir “já fomos bons nisso”.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), entre outros