“Ainda estou aqui” causou alvoroço. Por tudo quanto é lado. Conseguiu até deixar bolsonaristas à beira de um ataque de nervos. Se os irritou tanto, como irritou, é uma espécie de novo selo de qualidade. Os assassinos de Rubens Paiva são ídolos deles, de pais e filhos, admiradores da tortura e dos torturadores.
Vai daí a irritação.
Tanta, a ponto de provocar declarações estapafúrdias, próprias do pensamento da extrema direita, recheadas de mentiras, de falsificações da história, de fake news.
Quando lhe faltam argumentos, mentem, inventam.
Isso aconteceu com pai e filho.
Não podiam gostar do filme.
No momento desse justificado clima de Copa do Mundo em torno do “Ainda estou aqui”, são naturais os ataques por parte deles.
Fake news, a praia deles.
O chefe da tentativa de golpe, o ex-presidente Bolsonaro, próximo de condenação, pretendeu desenvolver teorias conspiratórias, e juntar o ex-deputado Rubens Paiva e Carlos Lamarca, um óbvio disparate.
Como se o ex-deputado estivesse vinculado aos esforços para o treinamento guerrilheiro no Vale do Ribeira, comandado pelo Capitão, brilhante oficial, muito ao contrário do ex-presidente, cuja trajetória como militar é no mínimo deprimente.
O deputado federal Eduardo Bolsonaro resolveu atacar o diretor do filme, Walter Salles.
Chega à estupidez de dizer ter o filme retratado uma “ditadura inexistente”, regime que prendeu, torturou, matou, fez desaparecer pessoas durante 21 anos. Como um aliado submisso de Trump, vai pra cima de Salles por ter criticado o governo americano.
O parlamentar não tem vergonha de defender um regime de terror e morte, como o implantado em 1964.
Nesse texto, pretendo deixar nítida a completa ausência de Rubens Paiva nos esforços do Capitão Carlos Lamarca para a implantação do campo de treinamento no Vale do Ribeira, transformado, por descoberto, numa autêntica guerrilha contra milhares de agentes, oficiais e soldados da ditadura, uma pequena guerrilha, naquele caso vitoriosa.
A provocação falaciosa do ex-presidente permite façamos o retrato daquele momento e de como Lamarca chegou ao Vale do Ribeira, transformando-o primeiro num campo de treinamento e depois vendo-se cercado, vale-se de toda a experiência e capacidade militar dele para escapar.
Rapidamente, algumas linhas em torno da conjuntura explosiva daqueles dias. Costa e Silva adoece, o vice Pedro Aleixo, preterido. Assume uma Junta Militar, precedendo a chegada do mais terrível presidente de todo o período da ditadura, Garrastazu Médici.
A esquerda armada não se dera conta da situação, da óbvia supremacia militar dos generais, dispostos a tudo, e sem quaisquer freios após o AI-5.
Costa e Silva ensaiara uma proposta de abertura, malograda com a doença dele, a ensejar o avanço dos setores mais duros do regime.
A esquerda armada, em ponto de bala.
O Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e a Ação Libertadora Nacional (ALN) sequestram o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, no dia 4 de setembro de 1969.
A exigência da soltura de quinze presos políticos é aceita pela ditadura.
Como iria deixar morrer um diplomata do Império, ao qual o regime dos generais era umbilicalmente ligado, e a ele inteiramente submisso?
Dia 6 do mesmo mês, Elbrick é solto, após haver a confirmação da chegada dos quinze prisioneiros políticos ao México.
Enquanto ocorria esse sequestro, e a tensão política aumentava de intensidade, prometendo, como ocorrerá, um processo de intensa repressão logo que concluída aquela ação, enquanto acontecia a inédita operação, ocorria outro importante encontro da esquerda armada.
O chamado Congresso de Teresópolis, iniciado no dia 1º de setembro daquele ano, cujo objetivo era promover a fusão do Comando de Libertação Nacional (Colina) e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Numa conjuntura como aquela, olhado à distância, um improvável acontecimento.
Como reunir, numa situação daquelas, de absoluta tensão, ditadura à beira de um ataque de nervos, em torno de sessenta revolucionários, todas e todos procurados, caçados, cabeças a prêmio?
Pois aconteceu.
Durou quase um mês.
Muita discussão e conflito.
Carlos Lamarca, presente, e muito ativo nas discussões.
Não concorda com a fusão.
Sai do encontro com a disposição de refundar a VPR.
Não aceita a nova organização, denominada Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), assim denominada pela maioria do encontro, a concordar com a fusão.
Sai do encontro disposto a liderar treinamento guerrilheiro. Mostrar a disposição de preparar militantes, de modo prático, para a luta armada.
Acreditava com isso dar o exemplo.
A força dele, do mito Lamarca, consegue atrair cerca de 30% dos militantes da recém-construída VAR-Palmares.
O Capitão acreditou-se forte. Restava agora orientar-se quanto ao local da preparação guerrilheira.
Pessoalmente, sentia-se bem partindo para tal operação. Já não aguentava mais a vida de aparelhos. Queria ação. Com esse treinamento, dava também uma resposta à ALN, com quem tinha divergências.
Marighella defendia ser Cuba o local próprio para treinamento dos militantes.
Lamarca mostraria ser possível preparar os militantes no Brasil. Marighella, assassinado dois meses após o sequestro de Elbrick, em São Paulo. Não sabia da operação. Quando soube prognosticou: virá uma repressão fulminante. Quase prevê a própria morte.
Na cabeça de Lamarca, o grosso dos militantes devia ser treinado no Brasil, nas condições do terreno local, e não em qualquer outro país. Iria preparar o primeiro grupo de guerrilha, formar combatentes para as colunas guerrilheiras a se espalharem nação afora: esse o objetivo.
Ele sequer participa do Congresso de fundação da nova VPR. Quem estivesse cumprindo tarefa prioritária, não devia participar de debates teóricos. Lamarca tinha pressa.
Logo após fugir do Quartel de Quitaúna, 24 de janeiro de 1969, levando armas para a Revolução, começa a pensar no treinamento de guerrilheiros.
Curioso: propôs logo de cara fossem examinadas as condições do Vale do Ribeira. Ele e os companheiros da primeira VPR, depois de criteriosa análise, vetaram a área: não era própria para o treinamento de guerrilheiros. A organização havia se apressado e comprado um sítio na região. Lamarca propôs vendê-lo, e isso é feito.
Consumado o racha, final de setembro, início de outubro de 1969, Lamarca muda de posição, e passa a defender o Vale do Ribeira como área própria para o treinamento dos militantes da nova VPR.
Sonhava com isso.
Sairia, então, do confinamento a que fora condenado desde a saída do Quartel de Quitaúna.
Melhor o risco total, fuzil nas mãos, do que a implacável solidão dos aparelhos, o risco permanente de ser surpreendido pela repressão.
O fuzil lhe dava segurança.
Era um militar. Consciente, de esquerda, militante desejoso de ver a Revolução triunfar. Mas, um militar.
O fuzil lhe dava segurança.
Ele, Ioshitane Fujimori e José Lavechia naquele segundo semestre de 1969 percorrem povoados do Vale do Ribeira, à procura de terras.
Olha um sítio, outro, e decidem pela compra de oitenta alqueires de terreno acidentado, mata fechada, à altura do quilômetro 510 da Rodovia Régis Bittencourt, distrito de Capelinha, município de Jacupiranga.
Negócio fechado por Monteiro, nome frio do militante Joaquim dos Santos, com o proprietário, Manoel de Lima, ex-prefeito do município.
O sítio, próximo a um rio com cachoeiras, localizado no Vale do Jacupiranguinha, ao sul do verdadeiro Vale do Ribeira, contava apenas com um rancho de caçadores, recoberto por guaricanga, uma palmeira nativa.
Seria, foi, uma base de abastecimento.
Lamarca e companheiros penetram na região, percorrem matas, modo a localizar a zona mais adequada para o treinamento dos militantes, futuros guerrilheiros.
Para tomar conta daquele rancho, dar aparência de alguma normalidade, Lamarca chama Tercina Dias. Ela e três filhos pequenos. Ela e o experimentado militante José Lavechia passam a morar ali. Uma família pobre de lavradores da região, a fachada.
Só para não deixar passar: Lavechia, preso no Vale do Ribeira durante o cerco, libertado com outros 39 presos políticos em troca da liberdade do embaixador da Alemanha no Brasil, Ehrenfried von Holleben, é mais tarde executado pela ditadura ao tentar entrar no Brasil em 11 de julho de 1974.
Do rancho, Tercina e Lavechia se comunicavam com as bases de treinamento através de um potente radiotransmissor. Periodicamente, iam até a BR-116, estrada a ligar São Paulo a Curitiba, outras vezes a Jacupiranga e Registro para comprar mantimentos.
Nada, nada a ver com Rubens Paiva.
Lamarca, ali, sentindo-se à vontade.
Comandando, orientando, discutindo, preparando o futuro foco guerrilheiro.
Na mata, foram montadas duas bases.
A primeira, batizada Carlos Roberto Zanirato, soldado, companheiro de Lamarca, assassinado pela ditadura militar no dia 29 de junho de 1969.
Composta por dez militantes, comandada pelo sargento Darcy Rodrigues.
A quatrocentos metros dali, a base Eremias Delizoikov, este assassinado no final de 1969, num aparelho da Vila Cosmos, no Rio de Janeiro.
A base, com oito militantes.
Esse conjunto formava o núcleo Carlos Marighella, comandado pelo Capitão Carlos Lamarca.
Rotina rigorosa, pulso de ferro, não obstante a fraternidade do comandante.
Às seis horas, todos de pé.
Almoço pela manhã.
Ao meio-dia, um café leve.
E a partir daí, comer só à noite, poucos antes de dormir nas redes de náilon.
As regras do comandante Lamarca tinham objetivo duplo: não fornecer pistas ao inimigo e se acostumar à dureza da luta.
Todos deviam estar sempre prontos para o combate.
As armas, bem cuidadas, sempre limpas.
Formar quadros político-militares: o objetivo.
Dividiam-se em grupos de estudo.
Uma bibliografia respeitável.
O Capital, Marx presente.
Teoria do desenvolvimento capitalista, Paul Sweezy.
O profeta desarmado, Isaac Deutscher, sobre Trotsky, só para lembrar algumas obras.
Nos estudos militares, recorria-se a Mao Tsé-tung, Giap, textos de Régis Debray e Che Guevara.
Para uma visão das lutas na cidade, Lênin.
Levados também a conhecer manuais de sobrevivência e primeiros socorros.
Lamarca evidenciava toda a capacidade dele nas aulas teóricas e práticas.
Ensinava o uso de explosivos, montagem e desmontagem de armas, tiro ao alvo e armadilhas contra tropas inimigas.
Em momentos mais amenos, reliam Poemas do cárcere, de Ho Chi Minh.
Em janeiro de 1970, estavam todos lá.
Inclusive Iara Iavelberg, companheira do Capitão, obrigada a se afastar logo depois por um problema de saúde.
Em abril, a área cai, entregue por Massafumi Ioshinaga e Celso Lungaretti.
E aí começa a luta para escapar do cerco gigantesco feito para prender os guerrilheiros.
Quem quiser conhecer bem como se deu a luta essencialmente vitoriosa daquela guerrilha involuntária pode recorrer ao livro “Lamarca, o Capitão da Guerrilha”, lançado em 1980.
Esse relato pretende apenas desmascarar a tentativa de Bolsonaro de vincular Rubens Paiva e Lamarca, como se o ex-deputado tivesse se envolvido na preparação do treinamento do Vale do Ribeira.
Nada a ver.
Rubens Paiva em nenhum momento se envolveu naquela empreitada.
Já se demonstrou isso.
Tudo nasce das teorias conspiratórias do ex-presidente, agora prestes a ser condenado e preso.
Nasce da prática de construir fake news, sem qualquer responsabilidade com os fatos.
O Estadão, jornal por obviedade isento de qualquer simpatia com causas de esquerda, na coluna “Estadão verifica”, corrobora a visão defendida nesse texto.
O título da notícia, por si só, é uma denúncia:
“É falso que Rubens Paiva tenha abrigado guerrilha de Lamarca em fazenda de Eldorado (SP).”
Nas linhas de apoio, o Estadão diz: “Grupo liderado por ex-capitão do Exército tinha base em área de mata de Jacupiranga (SP) e apenas passou por Eldorado durante fuga; texto com informações falsas sobre deputado morto pela ditadura voltou a circular após sucesso do filme ‘Ainda estou aqui’.”
Na fake news divulgada pelo ex-presidente e cúmplices, dizia-se ter o deputado Rubens Paiva abrigado bases da guerrilha rural liderada pelo Capitão Carlos Lamarca na Fazenda Caraitá, pertencente ao pai do ex-deputado, Jaime Paiva, e nós, no relato feito já demonstramos a falsidade de tal afirmação, mesma conclusão do Estadão.
Na matéria, revela-se: documentos oficiais do próprio Exército, ao falar na chamada Operação Registro, do combate à guerrilha, nem cita a fazenda localizada em Eldorado, de propriedade de Jaime Paiva, pai do ex-deputado, prefeito duas vezes do município. Rubens Paiva tinha desavenças com o pai pelas posições conservadoras defendidas por ele.
“Documentos oficiais, especialistas e depoimentos de moradores da cidade de Eldorado desmentem as alegações sobre uma ligação entre o ex-deputado e Carlos Lamarca.”
Desmascarada, a fake news.
Do Vale do Ribeira, Lamarca escapará, depois de um dos mais monumentais cercos realizados pelas Forças Armadas, perseguições, bombardeios, diabo a quatro. No “Lamarca, o Capitão da Guerrilha”, leitores saberão detalhes daquela epopeia.
Escapados do cerco, Ioshitane Fujimore, Diógenes Sobrosa, Ariston Lucena e o próprio Lamarca, sumiram na noite paulistana do dia 31 de maio de 1970. O Capitão será assassinado pela ditadura em setembro de 1971, no sertão da Bahia, e o livro ajudará a compreender como se deu a execução dele, e todo o massacre precedente. Não é por nada, não, mas vale a pena ser lido.
“Ainda estou aqui” possibilitou muita coisa. Deixar alvoroçados os bolsonaristas. Permitir que sejam desmascarados. E dar a tantas leitoras, leitores um pouco de conhecimento sobre o grande brasileiro Carlos Lamarca e tantas e tantos companheiros da luta revolucionária, os insubmissos, incapazes de aceitar passivamente a ditadura assassina, pondo-se em campo para combatê-la.
Salve, salve “Ainda estou aqui”.
Referências
HOLLEBEN, Ehrenfried von. Wikipédia, consulta em 7/03/2025.
JOSÉ, Emiliano; MIRANDA, Oldack de. Lamarca, o Capitão da Guerrilha / Emiliano José, Oldack de Miranda. – 17ª ed. – São Paulo: Global, 2015.
LAVECHIA, JOSÉ. Wikipédia, consulta em 7/03/2025.
PACHECO, Clarissa. É falso que Rubens Paiva tenha abrigado guerrilha de Lamarca em fazenda de Eldorado. Estadão, 14/01/2025.
ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira. A tia dos guerrilheiros: Tercina e o enfrentamento à ditadura brasileira nas memórias de Zuleide, sua neta. Caminhos da História: v. 28, n.2 (jul./dez.2023). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).
ZANIRATO, Carlos Roberto. Memorial da Resistência de São Paulo. Consulta em 7/03/2025.
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros