A investida do neoliberalismo sobre o Estado de bem-estar social, com o impedimento de expansão do gasto público, de um lado, e a retirada de direitos, de outro, abriu um enorme espaço para ofensiva das forças progressistas no sentido de aproveitar o processo eleitoral para pautar o debate da democracia substantiva, com participação social.
A democracia representativa – que trata dos processos e regras formais sobre a constituição e o exercício do poder – se exauriu porque envolve apenas os direitos civis (ir e vir, propriedade, expressão e pensamento etc.) e os direitos políticos (votar e ser votado, de associação, de manifestação etc.), constituindo-se em fonte e espelho das desigualdades do país.
As contradições desse modelo são de tal ordem que sequer a democracia participativa é admitida, mesmo com as facilidades, comodidades e rapidez da rede mundial, a internet, e das redes sociais. É que isso oportunizaria ao cidadão: a) ser consultado (via plebiscito, referendo e iniciativa popular) sobre as políticas públicas; b) opinar sobre a destituição de mandatos (recall); e c) criar formas de accountability (prestação de contas).
Nesse cenário de injustiça, de ausência de participação e de aprofundamento das desigualdades, não há regime político democrático que se sustente. Por isso é preciso ir além e optar por um modelo de democracia que favoreça a maioria do povo, notadamente a maioria vulnerável ou mais pobre da população.
Num ambiente desses, a defesa da democracia substantiva – que se confunde com a ideia de justiça social e vai além dos direitos civis e políticos – cai como uma luva, porque propicia a extensão da influência do cidadão à formulação e implementação das políticas públicas e à definição das prioridades do orçamento público, dando concretude também aos direitos materiais, especialmente os sociais, econômicos e culturais.
Afinal, o cidadão – que é a fonte do poder – não está mais disposto a aceitar como ética um tipo de democracia (no caso a formal ou procedimental) que busca apenas o apoio, o voto e a legitimação do exercício do poder, sem qualquer compromisso com o atendimento de suas necessidades, aspirações e demandas.
Nesse mundo dominado pela financeirização da economia e pelo individualismo, o que tem acontecido é que muitas vezes o eleitor que legitima o regime político se constitui na principal vítima da agenda adotada pelos titulares dos poderes eleitos, numa completa inversão de valores ou manipulação de vontade do eleitor.
Por tudo isso é que a ideia de democracia substantiva faz todo o sentido na atualidade, especialmente nesse mundo globalizado, no qual a chamada classe média alta e os ricos, quando ficam inseguros ou insatisfeitos em seus países de origem, após terem usufruído do Estado (estudando em universidades públicas) e acumulado recursos (explorando atividades lucrativas) ou adquirido direitos (aposentadoria etc.), por exemplo, simplesmente o deixam, comprando sua cidadania em outro país.
A democracia, como demonstrado, precisa ir além dos procedimentos formais, constituindo-se num regime simultaneamente participativo e substantivo, que assegure a participação e proteja os mais vulneráveis da violência, do desemprego e das privações. Se não for comprometida com valores e garantidora de igualdade no acesso aos bens e necessidades básicas, como educação, saúde, segurança, transporte, alimentação e lazer, assim como com a efetiva participação da cidadania, não se sustenta.
A atual conjuntura política, com o processo eleitoral em curso, portanto, é o momento ideal para propor mudanças do nosso modelo de democracia, com o propósito de fazer do Estado e de suas instituições agentes transformadores da realidade, capazes de proporcionar aos cidadãos os direitos econômicos e sociais, sem os quais a efetivação dos demais direitos, como liberdade e igualdade, inexiste.
Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista político e diretor de Documentação do Diap