A visita recente de Celso Amorim e Bresser Pereira ao ex-presidente Lula alimentou a discussão sobre a soberania nacional. Andava amortecida a palavra de ordem. A esquerda guardava alguma reticência em relação a ela, assentada em questões de fundo da maior importância. O mundo faz tempo enfrenta a voracidade do capital, borra os territórios nacionais pela ação das multinacionais. Marx, no século 19, já registrava a presença criadora e destrutiva do capital. Tudo que é sólido desmancha no ar.
O capital internacionalizou-se, com todos os direitos, diferentemente dos trabalhadores, confinados em suas nações, muitas vezes esmagados pelas guerras desenvolvidas pelo Império. Enfrentam todas as dificuldades para circular mundo afora.
Então, por que lutar pelas nações, já que o mundo é um só, os países esmagados?
Pela simples razão de que cada nação tem uma história, uma dinâmica relativa a cada povo, um ritmo de luta social singular.
É no chão de cada território que se joga o destino das populações, especialmente da classe trabalhadora.
É do interesse dos centros do capitalismo internacional sepultar a ideia de nação, ou só pensá-la a partir do destino subordinado dela.
O internacionalismo entre os povos, entre os trabalhadores de modo especial, absolutamente essencial, não pode desconhecer a importância da defesa da soberania de cada nação.
A discussão entre os três, rápida, acendeu o alerta: a soberania nacional deve ser uma de nossas bandeiras, não há por que não ser. Podem surgir muitas objeções à esquerda.
Não cabe mais o nacionalismo de antes.
O mundo mais do que nunca está conectado, não apenas no terreno midiático, mas no econômico.
As nações, em princípio, se pensada a boa política, devem manter relações de boa vizinhança e fazer negócios que resultem em benefícios recíprocos.
Tudo muito bem, tudo muito certo.
O Império, e aqui falamos de modo especial dos EUA, não age assim, não pretende o estabelecimento de relações de respeito mútuo entre nações.
Pensa no domínio das outras nações, e o faz do modo que possa, por guerras tradicionais ou pelas chamadas guerras híbridas.
As guerras pelo petróleo no mundo, o domínio de áreas geográficas estratégicas guiam a ação americana.
Seu olhar é o do capital, e Donald Trump é a radicalização disso.
Se até pouco tempo parecia que o olhar estava voltado quase que exclusivamente para o Oriente Médio, nos últimos anos o Império voltou-se para a América Latina, preocupado em desalojar governos progressistas eleitos em toda a região.
Essa ofensiva implicou operações que permitiram vitórias em eleições, como no caso da Argentina ou do Equador, que foi resultado de uma torpe traição, ou golpes, como em Honduras, Paraguai e na joia da coroa, o Brasil. Sem nenhuma dúvida, os EUA intervieram decisivamente para a vitória de Bolsonaro nas eleições passadas, complemento do golpe de abril de 2016, também apoiado pelo Império.
Uma visão simplificadora, bata-se nessa tecla, pode querer afirmar o fim das nações, devido à força da circulação dos capitais, das gigantescas multinacionais a deslocarem-se por todo o globo recebendo subsídios e subordinando governos, do tsunami do capital financeiro arrastando a tudo e a todos.
A quem interessa a ideia de que as nações não guardam mais importância senão ao capital de modo geral e ao Império de modo particular?
A defesa das nações, da soberania delas, é hoje papel da esquerda, com a clareza de que isso deva ser feito sem qualquer pretensão isolacionista, sem nacionalismos xenófobos, e sempre no sentido da produção de alianças com aqueles países seriamente preocupados com a melhoria da vida de seus povos.
O governo Bolsonaro deu sequência à política de subordinação aos EUA iniciada por Temer. Entrega o país por terra, mar e ar. Não se analise aqui a destruição de direitos que nos faz retroceder décadas, massacrando impiedosamente de modo especial os trabalhadores.
Nosso esforço é apontar a subordinação completa da nação aos interesses norte-americanos, sem que necessitasse qualquer esforço por parte do Império. A política externa é de causar vergonha pelo excesso, pelo ajoelhar constante diante das diretrizes definidas por Donald Trump. De todo ângulo que se olhe, só se constata destruição da economia e dos interesses estratégicos nacionais.
O pré-sal, mina de riqueza destinada a nos fortalecer como nação, a garantir recursos para nosso ensino e para o avanço científico e tecnológico, como definido pelo Congresso Nacional, foi entregue de mão beijada às grandes multinacionais do petróleo, tentativa de sepultar uma empresa que sempre simbolizou nossa independência econômica e nossa soberania.
A cessão da Base de Alcântara é da mesma natureza, e aqui abre-se mão de interesses estratégicos, militares inclusive, pela localização privilegiada dela.
O capital agropecuário e os capitais internacionais estão de olho na Amazônia, e a destruição desse continente verde, independentemente do crime ambiental a atingir o país e o mundo, atinge também as comunidades tradicionais e os povos indígenas de modo especial.
Nossa indústria recuou a níveis da década de 40 do século passado, e isso se deve, também, à natureza de nossa burguesia, que desde sempre preferiu ser sócia menor do capital internacional, e mais recentemente prefere ganhar no rentismo a investir na produção. Estamos inundados por produtos vindos de fora, e isso só deve se intensificar enquanto estivermos sob políticas tão entreguistas, despreocupadas com o fortalecimento do mercado interno.
A luta pela soberania, assim, coloca-se na ordem do dia.
Não é à toa que Lula levantou a questão nessa visita.
Como presidente da República soube, como ninguém, fortalecer o país, falar de modo firme com os países mais poderosos, garantir respeito aos nossos direitos, cuidando-se para não ser arrogante – e muito menos submisso.
Nunca em nossa história o Brasil foi tão admirado e respeitado. Solidificou os laços com os países irmãos da América Latina, sem nunca pretender qualquer relação de domínio.
Contribuiu decisivamente para consolidar entidades regionais, como a Unasul.
Preocupou-se com o fortalecimento do Mercosul.
Abriu-se para a África, certo de que tínhamos, temos, uma dívida histórica com o continente, a escravidão a nos marcar.
Abriu-se para a Ásia. Deu atenção especial ao Oriente Médio, sobretudo visando a conquista da paz.
Tornou o Brasil um dos principais protagonistas dos Brics.
Podemos falar de um período jamais experimentado em nossa história quanto ao respeito diante do mundo.
O país passou a ser necessariamente ouvido nas grandes questões internacionais.
Perdemos tudo isso em pouco tempo.
O tempo de Michel Temer e de Jair Bolsonaro.
Somos hoje um país desmoralizado diante do mundo, e enfrentando um processo acelerado de destruição de direitos e dos recursos de que dispomos para garantir o desenvolvimento, com destaque para o petróleo.
Evidente que a defesa da soberania, na visão de Lula ou de Celso Amorim ou de Bresser Pereira, está vinculada à ideia de um projeto nacional-popular capaz de promover o desenvolvimento voltado à luta sem trégua contra a cruel desigualdade que afeta o nosso povo desde sempre.
Crescer não basta.
É preciso crescer distribuindo renda e riqueza.
Nossos governos começaram um importante processo de distribuição de renda, abortado pelo golpe de 2016 e pela eleição de Bolsonaro.
Para seguir em frente, assegurar a defesa de nossa soberania, a retomada de tantos direitos sociais subtraídos, afirmar a democracia, a dignidade da política, teremos que, buscando a unidade das forças democráticas, progressistas e de esquerda, ir constituindo um bloco nacional-popular capaz de sustentar política e socialmente esse projeto tão generoso e necessário.
Todos os que quiserem se somar a essa empreitada tão urgente serão bem-vindos. Não pode nos faltar clareza, no entanto, de que tal bloco se assentará, sobretudo, naqueles que vivem do trabalho. Nossa burguesia, salvo as exceções, nunca se incorporou a quaisquer projetos que implicassem em melhorias para nossa gente mais pobre. É caudatária do capital internacional. Sua participação no golpe de 2016 e na eleição de Bolsonaro é uma evidência disso, sendo desnecessário buscar outros exemplos históricos.
Repor nosso lugar no mundo, de modo altivo e soberano, a favor da paz e de relações de solidariedade entre os povos.
Resgatar a democracia, tão aviltada pelo atual governo.
Lutar por tantos direitos sociais atingidos.
Unir o nosso povo para que isso seja levado à frente.
A vontade da nossa militância de esquerda é essencial.
Mas, mais que tudo, é fundamental que esse grande programa político esteja no coração do nosso povo.
Não há atalhos: um programa político só ganha concretude quando as massas se apoderam dele.
E o vulcão começou a despertar, como disse o companheiro Zé Dirceu antes de outra vez seguir injustamente para a prisão.
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros