"Desta vez tudo passou muito rápido. Como se, em apenas uma noite, a América Latina tivesse dormido de direita e acordado de esquerda. Depois da avassaladora vitória de López Obrador no México, em 2018, em apenas um mês, outubro de 2019, as forças progressistas venceram as eleições presidenciais na Bolívia, no Uruguai [ainda haverá o segundo turno] e na Argentina, elegeram um jovem economista de esquerda para o governo de Buenos Aires e ganharam as eleições na Colômbia, para o governo de suas principais cidades, como Bogotá e Medellín. E quase simultaneamente, uma sucessão de revoltas populares derrubou ou colocou de joelhos os governos direitistas de Haiti e Honduras, impondo pesadas derrotas aos presidentes de direita, do Equador e do Chile". Assim começa o artigo do economista e professor José Luís Fiori, “O ‘outubro vermelho’ e a esclerose brasileira”, publicado em 31 de outubro no portal Carta Maior.
Fiori dialoga com o argumento de Karl Polanyi em A Grande Transformação (1944) e desenvolve a ideia de que as derrotas neoliberais na América Latina neste "Outubro Vermelho" se devem ao fato de que o neoliberalismo que retornou com Macri, Bolsonaro e companhia estava na contramão do mundo. Isto é, enquanto o mundo seguia o caminho de fortalecimento dos sistemas de proteção social, os governos de direita daqui tentavam (ou tentam) impor uma agenda fundada nos princípios da desregulação social e econômica.
Para Fiori, a crise de 2008 teria sido o ponto de inflexão e reversão da tendência liberalizante das décadas de 1980 e 1990, e eventos como o Brexit, a eleição de Donald Trump, a chamada onda rosa latino-americana (Fiori não utiliza esta expressão), o fortalecimento das economias nacionais puxado primeiramente por Rússia e China e outros seriam exemplos desse contramovimento.
Sem discordar dos argumentos de Fiori, cujos escritos procuro acompanhar e gosto muito, permito-me trazer ressalvas ao otimismo. Certamente traumatizada pelos acontecimentos dos últimos anos no Brasil, ao mirar o cenário global me sinto igualmente desamparada.
A despeito dos efeitos nefastos da crise de 2008, não vimos grandes mudanças com impacto sobre a economia política, ou seja, sobre a forma de produzir e distribuir recursos entre nações e classes. As taxas de desigualdade de renda e riqueza não param de crescer. E questionamentos em relação à teoria econômica ortodoxa têm sido contornados por soluções de mercado elaboradas por teóricos do Norte global, que eventualmente vêm ao Sul em busca de dados e populações de controle para seus experimentos – a alusão ao mais recente prêmio Nobel de economia não é mera coincidência.
Entendo que a vida da classe trabalhadora nunca foi fácil e que as vitórias são fruto de lutas e de momentos de kairós na história. Mas a eleição de Bolsonaro, as votações de Macri na Argentina (40%), de Carlos Mesa na Bolívia (36%) e o avanço da direita no Uruguai – nosso querido vizinho, cuja agenda implementada combinou distribuição de renda e pautas libertárias tão caras à esquerda e aos jovens progressistas – são fruto de grande decepção. Porém, mais do que decepcionantes, penso que esses e outros sinais devem ser também objeto de atenção analítica. Situar Bolsonaro na contramão do sistema capitalista mundial não seria ignorar que os argumentos da antipolítica, da negação do consenso e do descarte da empatia são características comuns da política ao redor do globo?
Com relação à economia, à despeito se na contramão ou não do resto do mundo, o estrago já feito é enorme, haja vista a reforma da Previdência, o leilão da cessão onerosa que entrega nosso petróleo e a nova proposta de reforma do Estado enviada ao Congresso Nacional. É provável que esta não seja aprovada na íntegra, mas a arquitetura da destruição segue a todo o vapor na Esplanada dos Ministérios.
Em todo o mundo, as estatísticas eleitorais refletem resultados apertados e números de ausentes (no nosso caso, brancos e nulos) indicam descaso e descrença com relação à política. No pleito que elegeu Donald Trump, o Partido Democrata optou pela candidatura de Hillary Clinton, nome mais moderado, que buscava disputar o "centro", em vez de apostar em propostas transformadoras – para alguns, utópicas –, mas que vinham cativando muitos jovens até então desinteressados na política. Nas primárias que se anunciam para 2020, o mesmo Bernie Sanders de 2016 segue na disputa e tem o apoio de uma das novidades do campo progressista estadunidense, a jovem deputada por Nova York, Alexandria Ocasio-Cortez. Elisabeth Warren é outro nome democrata que vem caminhando para a esquerda, com uma plataforma que inclui reformas no sistema educacional e de saúde e regulação econômica.
Porém, minha angústia principal é que não vejo as alternativas na mesa sendo capazes de sensibilizar pessoas e acumular forças. Não vejo caminhos assertivos sendo construídos. Paulo Freire dizia que "uma política transformadora é feita com denúncia, mas também com anúncio". No caso do Brasil, sinto que estamos estagnados na árdua tarefa da denúncia, sem fôlego e criatividade para construir os anúncios que tanto precisamos. Identifico esforços e louvo todos eles mas parecem insuficientes e dispersos. Por diversos motivos, não vejo nossas denúncias e nossas (poucas) propostas cativando as pessoas.
Se há razões que fogem ao nosso controle – e elas são muitas –, há aspectos que podemos influenciar e medidas que podemos tomar para potencializar nossa agenda e nossa construção. Três delas me parecem chave:
Desculpem o desabafo. E mãos à obra.
Luiza Dulci é militante o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)