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Um presidente que pergunta sobre gozo com xixi e afirma que a democracia existe enquanto os militares quiserem. Ajoelhou-se. Rezou. Tutela consentida, explícita

Desconfio que Bolsonaro perecerá mais rápido do que se imaginava. Eu próprio achava que ele tinha gordura pra queimar – a mais recente pesquisa revelou que não. Está abaixo dos três últimos presidentes, considerado o mesmo período de FHC, Lula e Dilma.

O presidente está imerso no estreito mundo da campanha que já acabou. Pensa que pode continuar no mesmo ritmo, com os mesmos modos.

Mergulhado em seus delírios, desvarios.

Sonha que pode, ao anunciar a dissolução moral do país, ao revelá-la via twitter, tocar ele próprio as trombetas e fazer chover enxofre e fogo sobre os ímpios, os sodomitas que tanto o injuriaram nessa festa de pecadores.

E pedir então que ninguém olhe para trás – não se sabe quem será a mulher de Ló.

O pecado mora ao lado, sempre – e parece ser um delírio dele, contínuo.

O Gênesis talvez o explique – Yahweh e sua ira, anunciando as trombetas do inferno.

Se a Bíblia não servir, quem sabe o gênio de Freud – O Futuro de uma Ilusão ou O Mal-estar na Civilização, ou toda a obra, sei lá, porque a tarefa não é pequena.

Em princípio, nas últimas horas, ultrapassou todos os limites, não obstante não se possa dizer que ele tenha enganado alguém.

Na campanha, dizia obscenidades de todo tipo e nunca deixou de celebrar a tortura, sadismo à luz do dia. Crime muito maior do que aquilo que ele considera putaria.

No centro do seu oratório, Carlos Alberto Brilhante Ustra, o mais terrível torturador da ditadura, um covarde a matar presos subjugados, ocupa lugar de destaque.

Numa velocidade estonteante, está dissolvendo qualquer respeitabilidade do cargo de presidente da República.

Já está incomodando até alguns bem-pensantes da classe média que descontrolados em seu antipetismo optaram por ele, certos de que chegado à presidência retomasse o “bom-senso”.

Já ouvi choro e ranger de dentes na rede entre seus apoiadores.

Tudo valia contra o PT.

Não estou entre os que acreditam que ele se valha de ações golden shower apenas como manobra diversionista para encobrir questões mais sérias, como o caso do Queiroz, do filho senador. Trazer isso mais e mais à tona dependerá de nossa mídia, que ensaia, ensaia, mas não vai fundo. O Queiroz e o senador vão se esgueirando pelos cantos, e escapando. Até agora.

Um presidente divulgar um vídeo-show-pornográfico como aquele, um golden shower, a ponto de tornar-se uma celebridade mundial negativa, não revela estratégia midiática, mas, isso sim, uma personalidade frágil, incapaz de olhar-se no espelho como presidente da República que pretenda emprestar alguma dignidade ao cargo e incapaz de aceitar a crítica implacável das ruas.

Sabia-se de quem se tratava.

O atual presidente não se escondeu durante a campanha e ao longo de sua existência.

Faltavam-lhe requisitos essenciais para ocupar o cargo de presidente da República. Faltava-lhe, falta-lhe, a ideia da dignidade da política, da política como fundamento da civilização, da cultura.

A maior parte dos que votaram nele fez a opção pelo salto no escuro, apostou no ódio ao PT, incorporou o antipetismo de modo visceral, e agora alguns choram – pela vergonha e pelas dificuldades que vão passar com as propostas em andamento.

Vibraram com a perseguição, com a prisão do ex-presidente Lula.

Qualquer coisa era melhor que o PT, e melhor ainda que fosse o pior, o que destilava fogo e brasa, o que prometia a destruição do inimigo – nem pra escolher algum que tivesse, à direita, algum senso do que fosse a política, e eles estavam à mão.

E agora, José?

É quarta-feira, cinzas, reforma da Previdência para satisfazer o apetite insaciável do capital financeiro, 27 milhões de desempregados, recessão, a fome voltando aceleradamente.

E um presidente perguntando sobre o gozo com o xixi.

E agora, José?

Os Raimundo, João, Sebastião, Maria, José, os da periferia, os do campo e da cidade, os que vivem do trabalho têm que continuar o carnaval, transformar o seu monumental grito de indignação em ação política, num movimento de multidões de modo a resgatar a democracia, salvar a República, reaver direitos subtraídos, retomar nossa soberania.

Antes que a guarda pretoriana faça chover enxofre e fogo e nos leve a penar num vale de lágrimas.

Temos um presidente mambembe, sob tutela militar – são oito ministros e mais de cem deles encastelados em postos-chave.

Talvez alguns deles também sintam vergonha, mas vão levando.

O projeto é bem maior.

Discute-se em Brasília se seguirão com ele ou sem ele.

Os militares vão levando e garantindo essa monumental retirada de direitos do povo brasileiro.

Vão dando suporte a essa cruel, perversa reforma da Previdência, para mais e mais engordar as burras do capital financeiro e sangrar sem dó nem piedade a classe que vive do trabalho.

Horas depois do golden shower, ele disse, numa solenidade com militares, que a democracia existe enquanto eles, sim, eles, os militares quiserem.

Ajoelhou-se.

Rezou.

Tutela consentida, explícita.

Continuar ou não depende dos militares, e ponto.

O carnaval pode seguir adiante – a indignação com a reforma da Previdência pode ser um grande passo para isso.

Multidões reagindo, partidos, sindicatos, centrais sindicais, nosso povo cantando e lutando.

Caminhando e cantando.

Ou então deixar sangrar – e golden shower.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros