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Nunca tinha pensado na própria morte. Nem que a pior forma de morrer seria aquela, pela mão de um semelhante

Jantou e foi jogar truco na Praça Jaraguá. Ou pôquer, a (pouco) dinheiro. Alguém sempre levava um baseado. Fumou com os outros. Tomou um guaraná no bar do português, que reclamou que o irmão dele tinha levado um cigarro sem pagar. Não pagou o cigarro do irmão, senão não sobrava pro pôquer. O português ameaçou qualquer coisa. Ele já estava de costas, na porta. Falou filhadaputa meio baixo, meio alto. Se o cara quis ouvir, ouviu. Se não quis, deixa quieto. Não estava muito inspirado pra arrumar treta. Tipo domingão sossegado. Uma vez uma amiga perguntou por que se dizia sempre filhadaputa, mesmo pra xingar um homem. Nunca tinha pensado nisso.

Nunca tinha pensado em muita coisa. Se sua vida era boa, por exemplo: nunca tinha pensado. Quando era menor e ficava de recuperação, obrigado a estudar de noite, resmungava “merda de vida” mas não achava sua vida uma merda. Nem que era uma beleza; nem nada. Era a vida que ele tinha. Também não parava pra pensar que, aos 19, sexo masculino, cor parda, morador da zona norte, fazia parte de uma estatística tenebrosa. O medo era parte da vida dele como tudo o mais, como da vida de todo mundo.

Nunca tinha pensado em si mesmo como maloqueiro. Muito menos como bandido. Só porque dava uma bola à noite com os amigos? Só porque de vez em quando era ele que pegava o fumo na casa de um e levava para os outros na praça? Só porque às vezes avisava o traficante do pedaço que a polícia estava perto, e com isso faturava um baseado? Pensava em sua família como pobre, claro. Ouvia o pai dizer isso várias vezes por mês. Mas iam todos levando, ele ia levando também.

De modo que não estava nem um pouco prevenido. Estava só meio à toa numa noite de domingo. Não foi o primeiro a perceber a chegada dos motoqueiros. Na verdade, o que ele viu antes de tudo foi a cara que fez o Eliseu depois de baixar o jogo. Chegou a ter um pensamento engraçado, que o amigo fez aquela cara porque o jogo era baixo, mas não deu tempo de acabar o pensamento porque o Eliseu caiu. Só então escutou o estampido, já no ouvido da memória. Percebeu o colega estatelado no chão.

Será que escutou o segundo tiro, o que passou por dentro das costelas dele? Só sabe que de repente também estava no chão, de cara pro olho vidrado do Eliseu. Aí então pensou, pela primeira vez, que aquela era a sua vida. Sua única vida. Pensou pela segunda vez e daí começou a doer. Ouviu uma voz igual a sua gemer, mas não sabia que estava gemendo, estava só pensando essa é minha única vida e tinha uma moto roncando dentro do seu pensamento.

Debaixo de um caminhão estacionado ali pertinho viu o Francisco se mexer para sair do esconderijo. Como se o amigo ouvisse sua voz que ainda gemia e se mexesse para dar uma força. Só que a Lena puxou forte a camiseta dele e falou “cê tá maluco?”, e o Francisco continuou deitado quieto.

Nunca tinha pensado na própria morte. Nem que a pior forma de morrer seria aquela, pela mão de um semelhante. Também se alguém lhe dissesse que o encapuzado da moto era um semelhante seu, ele não acreditaria. Nem que fosse o padre que dissesse. Nem que fosse o pastor.

Ainda teve tempo de pensar nele menino empinando pipa. Pensou em guaraná maconha Maria Inês calcinha peito final da Libertadores. Não pensou na palavra chacina. Queria evitar, mas seu pensamento gritou mãe. Se sua voz não gemesse de novo o cara talvez nem voltasse pra dar outro tiro.

Nunca teria imaginado que no dia seguinte o delegado do bairro diria no jornal que aquilo foi briga de pobre matando pobre, de bandido matando bandido.

*Em memória de Anderson Gomes, Carolina Borges, Flávio Batista de Almeida, Pámela Ribeiro, Paulo Henrique Ribeiro, Rafael Araújo e Rodolfo Madeira, jovens entre 19 e 26 anos mortos na chacina no Jaraguá, bairro de São Paulo, dia 7 de maio de 2007. Até a data deste texto o crime não tinha sido esclarecido.

Maria Rita Kehl é psicanalista