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Theodomiro pretendia uma reportagem com ele, sobre ele. Não era matéria qualquer: havia riscos, entrevista com um clandestino, fugitivo, cabeça a prêmio

Theodomiro, sob as bênçãos do bispo de Vitória da Conquista, dom Climério Almeida de Andrade, é acolhido no Convento das Monjas Medianeiras.

Dom Climério fora vigário em Jequié, e notabilizara-se como empedernido conservador. Ao chegar a Vitória da Conquista, iniciou o convívio com os trabalhadores da cidade e do campo.

Sentiu de perto o sofrimento do povo.

Estrada de Damasco: tornou-se um arrojado e corajoso progressista.

A decisão de acolher Theodomiro, o homem mais procurado pela ditadura então, era quase temerária.

E a ousadia se completava com a ordem para ocupar um dos quartos próximos à clausura do Convento das Medianeiras.

Isso era inaceitável, na visão das monjas.

Naquela área não se admitia presença masculina.

Homem ali, nem pensar.

As religiosas estupefatas diante da ordem do bispo.

Mas, que fazer?

Ordem de bispo não se discute.

Uma delas ainda ponderou sobre o rigor das regras, reiterou: homem ali não podia.

Até aquele momento.

Bispo que é bispo manda e altera qualquer regra, se considerar necessário.

Fez-se.

Um homem entrou na clausura.

Clausura das monjas

O padre Giampiero Franchesni, italiano como Cláudio Perani, ficou encarregado dos contatos com Theo em nome de dom Climério.

Brincalhão, solidário, cuidadoso.

Sabia: Theo, confinado ao quarto, vivia uma espécie de prisão. Tentava amenizar a situação, visitando-o constantemente. Providenciou um pirógrafo, a permitir-lhe ocupar o tempo desenhando em peças de couro também conseguidas pelo padre tudo o que lhe vinha à mente. Theo já conhecia do ofício: trabalhou durante anos no artesanato da Galeria F, íntimo do pirógrafo.

Mas, convenhamos, aquela situação não era normal, e seria natural surgirem problemas de segurança rapidamente. Por mais cuidados se tomassem, por mais as monjas fossem disciplinadas, as coisas acabam vazando.

Uma empregada, um jardineiro, uma inconfidência de um ou de outro, e tudo podia se complicar. E havia ainda o fato de o convento hospedar freiras de outros locais do país. Vai que uma delas depara com um homem na clausura? Ia ser um Deus-nos-acuda.

Persignações, não sei quantas “Ave Marias”, trocentos “Pai Nossos”, dezenas de “Salve rainha, Mãe de Misericórdia”, vade retro Satanás, um escândalo sem tamanho depois que a pobre irmã descobrisse não ser uma alucinação: homem de carne e osso, afasta de mim esse cálice, Deus nos livre e guarde.

Dito e feito: uma das monjas começou a se intrigar, a manifestar desconfianças. Freira também desconfia e pode ser dada a intrigas, por que não? Aí não havia bispo capaz de segurar, dar jeito.

Theodomiro, incomodado. Não por nada disso. Mas porque começava a temer se tornassem verdadeiras as previsões dele de a presença no Brasil se prolongar muito.

Não teria sido melhor ter ido logo para o exterior? – era a pergunta que não queria calar.

O fato: situação no Convento das Medianeiras tornou-se insegura.

Renato Afonso é novamente acionado, e recorre, mais uma vez, a Cláudio Perani, o abnegado, corajoso jesuíta. Afonso já estava constrangido de tanto recorrer a ele, mas não tinha alternativa.

Perani procura outro bispo, dom José Nicodemus Grossi, e o convence a receber o fugitivo mais procurado do Brasil.

Santa Madre Igreja. A resistência à ditadura deve muito a ela.

Dom José Nicodemus Grossi era bispo de Bom Jesus da Lapa, município a quase 800 quilômetros de Salvador, a 380 quilômetros de Vitória da Conquista.

Renato Afonso e Roberto Mujaes, agora já abrimos o nome do parceiro dele naquelas empreitadas em solo baiano, bem armados, saem de Salvador em direção a Conquista.

Desta vez, Renato preferiu não abusar da sorte: deixou o DKW 1962 em casa e alugou uma Brasília novinha em folha.

Céu azul, águas, sertão veredas

Um dia inteiro de viagem por estradas empoeiradas e esburacadas. Procuram dom José Nicodemus Grossi, e os três são orientados a seguir para uma fazenda de propriedade de padres redentoristas, administradores do Santuário de Bom Jesus da Lapa, para onde acorrem milhares de fiéis todo ano, no mês de agosto, romaria grandiosa.

A fazenda ficava a uns 40 quilômetros de Lapa.

Theodomiro deslumbra-se ao chegar: depois de uma década de prisão e clandestinidade, era a primeira vez a experimentar uma verdadeira sensação de liberdade.

Talvez por deparar com a natureza, pela possibilidade de olhar para aquele mundão sem fim, pras águas do São Francisco, para aquele céu azul tão azul, grande sertão veredas.

Ali ficaria o tempo todo do mundo: liberdade, liberdade.

Enquanto Theodomiro contemplava sertões, veredas e água, o PCBR tinha de dar conta da fuga. Bruno Maranhão, principal dirigente, recém-chegado do exterior, no Rio de Janeiro, alugou uma casa no Arraial do Cabo – ampla, sala grande, três quartos, a 200 metros da praia.

Começava a fase decisiva, hora da onça beber água.

Tratava-se agora de trazer Theo da Bahia para o Rio de Janeiro. Restava saber quem retiraria o fugitivo das profundezas do sertão, das beiradas do São Francisco, tão longe.

Quem o colocaria são e salvo nas mãos do PCBR, no Rio de Janeiro?

A tarefa coube a Marco Antônio, irmão de Renato Afonso.

Militante experimentado, preso em 1971, era então superintendente da Baker Oil Tools do Brasil, empresa norte-americana fabricante de peças para poços de petróleo, fundada em 1913, baseada em Houston, no Texas.

Parecia uma boa decisão: um dirigente de uma multinacional não despertaria suspeitas.

Sensibilizou os superiores ao noticiar a morte de um primo na Bahia e pôde viajar no suntuoso Opala Comodoro, utilizado por ele nas atividades cotidianas no Rio de Janeiro. Quando lembrava do episódio, Marco Antônio brincava:

O imperialismo colaborou com a revolução.

Combinado era o seguinte: Marco Antônio pegaria Theo em Conquista e o levaria para o Rio de Janeiro. Alguém precisava buscá-lo em Bom Jesus da Lapa, levá-lo até Conquista.

A tarefa foi entregue a Roberto Mujaes, a quem nunca faltou coragem e disposição. Examinou cuidadosamente o estado das armas, não viajava sem elas. Alugou um carro, seguiu de Salvador até Lapa, de onde partiu com Theo para Conquista.

Marco Antônio já os esperava no Hotel Albatroz. A operação a partir dali passou a levar o nome do hotel: Albatroz.

Theo refletia, sempre preocupado: temia pelas previsões dele próprio, quando da discussão sobre os desdobramentos da fuga. Decorrera mais de dois meses desde o dia 17 de agosto. Temia isso, havia avisado, alertado. Queria sair logo do país, do jeito que desse.

Se não saísse, corria o risco de passar um longo tempo vagando, clandestino. Estava passando. Mas, que fazer?

Agora, estava inteiramente nas mãos do BR, e confiava no partido, não obstante soubesse das dificuldades por que passava naquela fase de reorganização.

Dia 24 de outubro à noite, estrada em direção ao Rio de Janeiro.

Theo e Marco Antônio no luxuoso e confortável Comodoro, Mujaes no carro alugado. Ambos os motoristas armados, dispostos a reagir no caso de Theo correr qualquer risco, único a viajar limpo, sem qualquer armamento. Cobrem um bom trecho e dormem num hotel de beira de estrada.

Acordam com as galinhas, tomam um café ligeiro e pernas pra que te quero, o caminho era longo. Vão chegar à casa do Arraial do Cabo à 1 hora da manhã do dia 26 de outubro.

Emocionante o encontro de Bruno e Theo. Não se viam havia quase uma década, uma vida. Vararam a noite, papeando. A conjuntura, o BR e, sobretudo, o PT. O partido ainda discutia como comportar-se diante daquela novidade prestes a se tornar realidade. Theo ouvia, falava pouco.

Quase impasse

A conversa só ficou tensa quando começou a discussão sobre como Theo devia sair do Brasil. Theo, entrincheirado na posição dele, o BR, da mesma forma. Decididamente, Theodomiro não aceitava a ideia de asilar-se numa embaixada. Seria outra prisão.

Bruno Maranhão, comandante da operação, batia na tecla dos inegáveis frutos políticos decorrentes de um asilo numa embaixada, inexistentes se a opção fosse por uma saída clandestina por alguma fronteira.

Alimentava a convicção de que a ditadura não teria interesse em deixá-lo muito tempo no Brasil numa embaixada depois de ter conduzido, mal ou bem, um processo de anistia. Precisava colher os frutos disso, e Theo numa embaixada seria uma pedra no sapato.

Impasse. Ninguém saía do lugar. Eternos minutos de silêncio.

Theo olha para Bruno Maranhão, mal conseguindo encará-lo. Tanto respeito tinha por ele, primeiro filho chamou-se Bruno.

Dá um passo, move uma pedra, rendendo-se: aceitaria a decisão do PCBR se o partido baixasse o centralismo.

Baixar o centralismo designava a forma adotada pelos partidos de origem leninista de decidir uma coisa por ato da direção quando houvesse divergência insanável.

Assim, Theo colocava o problema nas mãos do partido. Bruno pulou. Não gostou.

Agir daquela forma seria uma agressão ao companheiro e amigo tão querido.

Discussão seguia, depois de ter engolido a noite.

Bruno move outra pedra, propõe outro acordo.

Explicou: o partido já havia articulado tudo para colocá-lo são e salvo dentro de uma embaixada.

Theo, assuntando.

Até aí conhecia o enredo.

Bruno, no entanto, tirou outra carta da manga: se, no entanto, até o dia primeiro de janeiro de 1980 ele não tivesse saído do país, seria resgatado e levado para fora do Brasil pela fronteira.

Theo aceitou.

Essa fuga reclamou a presença de outros personagens, envolvidos involuntariamente.

Nesse mesmo mês de outubro, sou procurado por Naturzinho – com tal diminutivo chamávamos Natur de Assis Filho, militante do BR e ex-companheiro de Galeria F da Penitenciária Lemos Brito.

Eu trabalhava no Estadão, sucursal de Salvador, edifício Martins Catharino, rua Chile, centro da capital baiana. Chegou assim, com um indisfarçável ar conspirativo – jeito dele, sempre foi, e neste caso havia razões de sobra.

Saí da redação, sentamo-nos na escada, e ele revelou então a razão da misteriosa visita. Primeiro, deu a notícia, até para mim surpreendente: Theo estava no Brasil. Desde o dia 17 de agosto daquele ano, quando fugira, era dado em Havana, Paris, mundo afora, terras alheias.

Depois disso, direto ao ponto: Theodomiro pretendia uma reportagem com ele, sobre ele.

Feita por mim.

Pretensão de Theo e do BR.

Tudo bem, Naturzinho. Topo.

Avisei: não havia, no entanto, como não consultar o chefe da sucursal, o jornalista Carlos Navarro Filho.

Não era matéria qualquer: havia riscos, entrevista com um clandestino, fugitivo, cabeça a prêmio. E eu não tinha atribuição para decidir. Navarrinho sentiu o peso. Disse:

Né brinquedo, não. Terei de ir a São Paulo consultar o velho Júlio de Mesquita Neto sobre a matéria, se o jornal topa ou não.

Riscos enormes, uma sucursal não podia decidir sozinha. Matéria a ser feita na clandestinidade.

O liberal conservador

O velho Júlio de Mesquita topou a parada. No entanto, fez o alerta:

Toque o barco, mas muito cuidado para não levar os órgãos de segurança até o rapaz.

Manifestava-se a dignidade de um velho conservador.

Navarrinho e eu seguimos para o Rio de Janeiro. Quando chego no ponto marcado, é, tinha ponto e tudo, me senti de volta à clandestinidade.

Sou surpreendido por uma decisão tomada pelo BR:

Não haverá encontro com Theodomiro – Naturzinho me informou.

Estivesse sozinho, tudo bem. Como viera com Navarrinho, negativo. Os riscos de segurança eram maiores, e o partido decidira pela precaução.

Resolveu-se então: eu cobriria outro ponto, marcado ato contínuo, e entregaria ao contato uma série de perguntas por escrito a serem respondidas por Theo. Propus: mandassem as perguntas em fita cassete. Nada de rir: fita cassete era a última moda, tecnologia de ponta. E Theo devia mandar uma declaração de próprio punho confirmando ter dado a entrevista.

Entreguei as perguntas no ponto marcado – apenas eu cobria os encontros. Questão de segurança, exigência do BR.

Navarrinho, com quem eu combinava tudo, me esperava sempre no hotelzinho onde nos hospedamos, nas cercanias do Leme, próximo a Copacabana.

Cubro o novo ponto marcado. No dia 29 de outubro, a fita cassete chega às nossas mãos. Ouvir a voz de Theo, depois de tanto tempo, uma emoção muito grande. Quatro anos de convivência na Galeria F em Salvador, eu a conheceria onde ouvisse. Nem precisava a declaração por escrito – necessária apenas para dar autenticidade à reportagem, como deu.

Fomos para São Paulo ainda no dia 29. Júlio de Mesquita não estava na redação. Era noite e certamente já se encontrava em casa. Luciano Ornelas era o responsável pela redação no momento. Devia decidir pela reportagem...

Referência

JOSÉ, Emiliano. O Cão Morde a Noite. Salvador: EDUFBA, 2020. 426 p.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), O Cão Morde a Noite, entre outros