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O risco de ser morto, muito alto. Seria o único preso político a restar naquela prisão. A anistia não o alcançaria pelo fato de ter cometido “crime de sangue”

Dia 17 de agosto de 1979.

Theodomiro salta da cama muito cedo. O espírito aceso, todos os sentidos despertos. Dia decisivo. Num átimo, como num filme, as lembranças o assaltam. Década na qual tudo virou de cabeça pra baixo. O país e a vida. Entrara na militância, adotara um partido, o PCBR, embarcara de malas e bagagens na luta revolucionária. Fora obrigado a resistir à prisão, atirar e matar um sargento, quase ser morto pela ditadura, e cumprir aquele tempo todo de prisão, quase nove anos.

Agora, fugir ou fugir.

Decisão tomada.

Não fora possível a fuga com Vicente Maia, o intrépido assaltante de banco, preso comum, porque o PCBR não estava em condições de garantir mínimas condições de sobrevivência política quando se encontrasse fora das grades. Agora, depois de tantas discussões com o PCBR, e face à decisão irrecorrível dele próprio, a fuga não se punha mais em discussão.

Sabia: as condições não eram ideais, o PCBR ainda não era um partido muito forte, mas a situação política possibilitava ter alguma segurança ao ganhar a liberdade. Início dos anos 1970, as condições eram precaríssimas. Agora, com a proximidade da anistia, alguma abertura, as condições de reorganização do BR eram maiores, embora soubesse ainda em estágio incipiente.

Aquele, o dia.

Pensava: curioso – fuga às portas da anistia, a acontecer, de acordo com as previsões, no final daquele mês.

Sabia: ficasse na Galeria F, na Penitenciária Lemos Brito em Salvador, o risco de ser morto, muito alto. Seria o único preso político a restar naquela prisão. A anistia não o alcançaria pelo fato de ter cometido “crime de sangue” – como se a ditadura não estivesse banhada em sangue, como se ele não tivesse reagido a uma abordagem inteiramente arbitrária e se utilizado do sagrado direito à resistência diante de um regime tão arbitrário.

Dialogava consigo mesmo: porque estava tão tranquilo? Era sempre assim: nos momentos decisivos, exatamente naqueles em que todos os sentidos estão despertos por necessidade, ele era invadido pela tranquilidade.

Talvez porque seguro da decisão.

Ouvira ponderações sobre os riscos.

Amigos, como o padre Renzo Rossi, disseram: se o localizarem, vão matá-lo. A vida é risco, sempre foi. Quis, quando decidiu fugir, tomar o destino nas mãos. Não pretendia mais permanecer preso, à espera de um matador de aluguel, fácil de encontrar dentro de presídios como de alguma forma fora quase sugerido pelo governador Antonio Carlos Magalhães. Tivesse de correr riscos, melhor fosse em campo aberto, agindo, e não ali esperando a morte chegar.

Despediu-se de Haroldo Lima, amigo e companheiro, com quem estabeleceu relações de profunda amizade e admiração, e com quem confidenciara todos os passos a serem dados.

Quando acordou, olhou o relógio: nem batera cinco horas.

Sexta-feira.

A penitenciária ainda não fora tomada pelo barulho infernal dos mais de 600 presos recolhidos ali. Levantar muito cedo fazia parte do plano de fuga pensado por ele. O guarda de plantão observando-o sair voltaria apenas no dia seguinte. Com a ausência dele, só dariam pela falta dele 24 horas depois. Se dessem.

O jardineiro

Não havia nenhuma estranheza nessas saídas.

Theodomiro adorava plantas e flores. Cuidava de um pequeno canteiro à frente da cela, para ele uma forma de minimizar a aridez da prisão. Era comum Theodomiro ser surpreendido de cócoras, acariciando as rosas, tirando as folhas mortas, adubando a terra, semeando.

Um jardineiro.

Jeito dele de ficar sozinho. De cultivar a solidão de que sempre necessitou. Preso necessita da convivência e precisa da solidão: este, o momento de refletir, da introspecção, de armazenar energias para enfrentar o embate cotidiano do cumprimento da pena.

Por tais manias, cultivadas durante anos, as saídas dele foram naturalizadas. Os guardas não estranhavam quando se embrenhava no mato à procura de mudas de plantas, fosse qual fosse o horário da saída. Costumava passar horas e horas nessa busca, e voltava, ora com as mãos cheias, ora vazias.

Isso, de um lado, era algo a lhe dar muito prazer. De outro, ia configurando um quadro de confiança diante dos guardas: ele jamais tentaria uma fuga. Já havia uma espécie de código de confiança entre a direção do presídio e os poucos presos políticos da Galeria F. Nem de longe, havia desconfiança da possibilidade de fuga de um deles. Presos, na Galeria F, então, apenas ele, Haroldo Lima, dirigente do PCdoB, e Paulino Vieira, direção do PCB. Certo: os dois sairiam com a anistia. Theodomiro permaneceria.

Naquele 17 de agosto de 1979, Theodomiro exibia uma barba espessa, usava óculos de aros grossos, os cabelos encaracolados desacostumados do uso de pente.

Bom dia.

Assim, com um alegre bom dia, cumprimentou o guarda, já apressado em lhe abrir o pesado portão de saída dos fundos da penitenciária.

Seguiu caminhando na direção do matagal.

Caminhava sem pressa, como se procurasse espécies, como se as escolhesse de modo cuidadoso.

O guarda nem atenção deu. Era da rotina tais saídas. Para Theodomiro, nada de rotina. Embrenhou-se no mato e não voltou mais.

Buscou com precisão o arvoredo onde estava a roupa nova a ser usada na fuga. Fora deixada em cima de uma pedra e sob um balde de plástico emborcado. Junto, um barbeador, um espelho, um par de sapatos e óculos novos, de aros finos de metal. Era a hora da transfiguração.

Fez barba e bigode, trocou de roupa, guardou todo o resto num saco a ser levado com ele, penteou o cabelo, deixando-o liso. Olhou-se no espelho e surpreendeu-se: estava muito diferente, como necessitava para a operação de fuga.

Venceu o matagal, conhecido dele, deparou com o casario pobre. Subiu a ladeira em meio a um já frenético movimento de pessoas a caminho do trabalho no bairro do Pau da Lima. Alcançou uma rua central, chamou um táxi.

Indicou o endereço: Cemitério do Campo Santo, por favor. Na Federação, bairro próximo ao centro de Salvador, talvez a uns 15 quilômetros do Pau da Lima. Trata-se do mais tradicional e mais antigo cemitério da capital baiana, a provocar, quando foi anunciado, em 1836, uma sublevação denominada Cemiterada – uma revolta dos pobres, a desconsiderar, a revoltar-se com a chegada do mercado ao negócio da morte, afinal vitoriosa.

O ponto, como chamado à época por revolucionários, fora marcado em frente ao Cemitério do Campo Santo.

Para alegria de Theodomiro, quem o esperava era Regina Afonso de Carvalho, então mulher de Renato Afonso, dirigente do BR e até ali o principal comandante da operação. Regina Afonso era militante do Comitê Brasileiro de Anistia na Bahia e também envolvida com a fuga.

Mergulhando na noite

Tudo devia andar em ritmo frenético.

No mesmo dia, por volta de 23 horas, Theodomiro partiu em direção a Ilhéus, a 464 quilômetros de Salvador. Acompanhando-o, Renato Afonso e mais dois militantes. Dois carros: um Chevette e uma caminhonete.

O PCBR tinha uma convicção: se os órgãos de segurança identificassem Theodomiro, o matariam.

Assim, levavam armas para enfrentar qualquer imprevisto: duas escopetas calibre 12, um rifle, e cada um, à exceção de Theodomiro, a arma pessoal, todos com um 38.

Renato Afonso me disse: Theodomiro fosse identificado, não hesitariam – abririam caminho à bala.

Felizmente a viagem, madrugada adentro, seguiu sem sobressaltos. O arsenal chega a Ilhéus intocado.

Eram esperados por Gilberto Almeida Wildberger, dublê de intelectual e fazendeiro cuja família de origem suíça chegara a possuir, na década de 1930, mais de 2 milhões de pés de cacau plantados. Muito rica, a família dele. No passado.

Wildberger, muito próximo do PCBR, topou participar da operação. Recebeu Theodomiro em Ilhéus, e Renato Afonso e os outros dois militantes do BR voltaram para Salvador, ainda na manhã do dia 18 de agosto.

Em carro próprio, Wildberger levou Theodomiro para a fazenda dele, no município de Canavieiras, próximo a Ilhéus. Esperança”, o sugestivo nome da propriedade. Já passava das 21 horas quando Theodomiro chegou à Esperança. Dormiu bem, e no dia seguinte foi apresentando aos moradores e trabalhadores da fazenda como pessoa interessada na compra da propriedade.

Antes de seguir para Salvador, onde precisava estar no mesmo dia, Wildberger deu um jeito de enguiçar o gerador de eletricidade de modo a impedir a recepção do noticiário da televisão. Não era conveniente, com Theodomiro na fazenda, recebessem os moradores a notícia sobre a fuga. Embora disfarçado, não custava alguém mais perspicaz perceber fosse ele o fugitivo.

Antes de seguir viagem, Wildberger recebeu um pedido de Theodomiro: desse um jeito de alguém telefonar para a Lemos Brito, chamar Haroldo Lima na Galeria F, e dizer a ele, utilizando a senha combinada, pudesse dar publicidade à fuga e divulgar a carta, escrita pelo próprio Lima, dirigida ao senador Teotônio Vilela, presidente da comissão mista de parlamentares que examinava o projeto de anistia.

Na Fazenda Esperança, Theodomiro, com a viagem de Wildberger à capital, restou sozinho. Modo de dizer: havia muita gente na propriedade. Andou pelas redondezas, como se vistoriasse plantações, como se avaliasse se valia a pena efetivar a compra. Estava tranquilo.

Só não sabia das movimentações do administrador da Esperança. Acostumado a ver os programas de tevê logo depois da lida diária, foi logo ligar o aparelho. Problema, não ligava. O cidadão, cheio de experiências, acostumado a lidar com coisas enguiçadas, mexeu, futucou o quanto pôde, fez das tripas coração, e de repente o mundo iluminou-se de novo, e a tevê voltou a funcionar.

À noite, no “Fantástico”, a bomba. Cid Moreira anuncia a fuga. O susto de Theodomiro foi tal, tão forte a ponto de as pernas fraquejarem, faltou chão. Segurou-se no corrimão da varanda de modo a não cair. Dali, via o programa. A primeira reação: está tudo perdido, demos com os burros n’água.

Passado o intenso nervosismo inicial, voltou a olhar para a sala, onde todos estavam, e via-os impassíveis, tranquilos, assistindo à sequência do “Fantástico”. Lembrou-se de quando olhara para o espelho logo depois da transfiguração, no meio da mata, quando se reconheceu muito diferente da imagem construída durante anos. A mudança era real, e ele não fora reconhecido. Respirou aliviado.

Luz vermelha

Mas o fato acendeu para ele uma luz vermelha. Não convinha facilitar. Um eventual comprador não fica tanto tempo num lugar. Além disso, Wildberger experimentou situação semelhante em Salvador. Assistiam ao “Fantástico”, ele e a mulher naquele domingo, 19 de agosto de 1979. Francisca percebeu, e não havia como não perceber, quando o marido começou a tremer compulsivamente logo no início da notícia dada por Cid Moreira. A tremedeira não parava, por mais esforços Wildberger fizesse. Ela compreendeu tudo, e foi pra cima dele:

- Você está metido nisso, você está metido nisso.

Como negar? Monossilábico, admitiu. E voltou à Esperança para avisar Theodomiro ser impossível continuar ali, já adiantando outra possibilidade de refúgio. Fazenda também da família, em Itapebi, a 597 quilômetros de Salvador, a 202 quilômetros de Ilhéus. Logo, no entanto, a situação no novo refúgio se complicou. Gilberto Wildberger pediu ao PCBR retirasse Theodomiro logo da propriedade, pois havia nítidos sinais de riscos de segurança. Sentia-se isso. Um olhar atravessado de um, de outro. Insegurança.

As dificuldades para manter o fugitivo na Bahia eram cada vez maiores. O PCBR não dispunha de uma estrutura sólida. Foi avisado da situação de Itapebi, e novamente o único a responsabilizar-se por aquela nova operação, Renato Afonso. Pensou, pensou, e concluiu: o melhor carro para tirá-lo de lá seria o carro dele mesmo.

Um velho DKW, anos de estrada, de 1962. Um automóvel assim, tão velho, tão usado jamais despertaria suspeitas. Improvável, impossível quisesse o homem mais procurado do Brasil continuar a fuga num carro assim tão depauperado. Assim raciocinava Renato Afonso.

Partiu para Itapebi, acompanhado de um companheiro, a quem Afonso nunca quis nominar. O acompanhante seguia armado, bem armado, e sabia atirar como poucos. Passados os anos, não quer nem ouvir falas dessas histórias.

Antes de viajar, no entanto, Renato Afonso procura outro religioso, o padre jesuíta Cláudio Perani, dirigente do Centro de Estudos e Ação Social (Ceas). Suplica: precisava de ajuda. Perani bate às portas do bispo de Vitória da Conquista, dom Climério Almeida de Andrade. Arrodeia, arrodeia, o bispo ouvindo, atento. Ao final, o jesuíta recebe o sinal verde: Theodomiro seria acolhido em Conquista. Seria o terceiro pouso dele, naquela fuga cheia de aventura.

Padre Perani havia procurado primeiro as monjas medianeiras. Mostraram-se simpáticas, porém relutantes. Disseram necessitar da aprovação de dom Climério. Igreja Católica tem hierarquia, e bispo está no topo do comando. Ele eliminou quaisquer dúvidas, ao dirigir-se às monjas:

Ele deve ficar no mosteiro e se acontecer qualquer coisa vocês responsabilizarão a mim, unicamente.

Foi assim a batida do martelo.

Theodomiro chegou a Vitória da Conquista sob a bênção do bispo.

Cidade então com mais de 170 mil habitantes. Atualmente, o terceiro município da Bahia, com mais de 370 mil moradores.

Referência

JOSÉ, Emiliano. Galeria F : Lembranças do Mar Cinzento; segunda parte. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2004.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), entre outros