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Não havia mais censura propriamente. Já havia acontecido a anistia. Predominava outro clima na imprensa, mas a autocensura era evidente

Eu e Carlos Navarro Filho fomos para São Paulo, dia 29 de outubro de 1979. Tínhamos a gravação feita com Theodomiro Romeiro dos Santos, matéria-bomba combinada com o próprio Júlio de Mesquita Neto, diretor do Estadão. Ele, no entanto, não se encontrava mais no jornal. Certamente já em casa porque tarde, noite. Luciano Ornelas era o responsável pela redação no momento. Devia decidir pela reportagem. Que fosse: não importa a cor dos gatos, importa que cacem ratos.

Navarrinho e eu nos pusemos a trabalhar, escrever a matéria, dar forma à reportagem na sala reservada a nós, contígua à redação. Redigido o material, Navarrinho vai ao encontro de Ornelas. Este, depois de ler atentamente a matéria, disse tudo bem: será publicada, como acertado por doutor Júlio. Alegria, alegria, Navarrinho feliz da vida. Naquela conjuntura, era a matéria de nossas vidas.

Efêmera felicidade.

Luciano Ornelas engatou um veja bem, ciscou de um lado, ciscou de outro, e disse da decisão dele: a parte propriamente política da entrevista de Theodomiro não entraria. Seria suprimida a dura condenação à ditadura feita por ele, e desapareceria também a defesa da liberdade de organização política e sindical, da construção do Partido dos Trabalhadores, além da denúncia das torturas e dos crimes dos militares, para dar alguns exemplos. Mais real que o rei. Júlio de Mesquita Neto provavelmente deixasse a matéria ser publicada na íntegra.

Havia muitos Ornelas nas redações. E olhe: era outra fase da ditadura. A repressão não se dava como antes. Não havia mais censura propriamente. Já havia acontecido a anistia. Predominava outro clima na imprensa, não obstante a ditadura não houvesse acabado. Mas os Ornelas davam sempre o ar da graça. Autocensura, evidente. E covardia, não há como não reconhecer isso. 

Quando Navarrinho volta à sala onde estávamos trabalhando, senti no olhar dele: alguma coisa dera errado. Ao ser informado da decisão por ele, reagi prontamente: eu não assinaria a matéria. Evidente: assinar uma reportagem como aquela era uma honra muito grande. Furávamos toda a imprensa nacional e internacional.

Mas em mim falaram mais alto o rigor ético e a amizade. Era um desrespeito à fonte. E não desrespeito a uma fonte qualquer. Tratava-se de um companheiro muito querido. Havia convivido com ele durante quatro anos na prisão, ele acompanhando meus primeiros momentos na tortura, eu sabendo dos tormentos todos dele: a condenação à morte, a decisão da ditadura de não o deixar sair para o exílio no decorrer do sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, tanta coisa, amizade construída nas catacumbas da prisão da ditadura.

Assinasse, e Theo me consideraria conivente com a censura.

Navarrinho, profissional de grande estatura moral, correndo todos os riscos porque chefe da sucursal de Salvador, concordou inteiramente: também não assinaria. Ornelas, coerente na postura de ser mais real que o rei, manteve a decisão.

Theodomiro está no Brasil

Dia 30 de outubro, o Estadão estampa a notícia-bomba: Theodomiro está no Brasil, com direito à chamada destacada na primeira página e página inteira na contracapa, o bilhete manuscrito de Theo confirmando a entrevista.

Matamos a cobra. Mostramos a cobra morta.

Atônita – assim, o restante de toda a imprensa brasileira.

Ninguém gosta de levar um furo daquelas proporções pelas fuças.

Lembro de nesse dia 30 ter passado na redação do nascente Jornal da República, dirigido por Mino Carta, no qual figurava também Raul Bastos, a quem havia conhecido na sucursal de Salvador. Todos comentavam a reportagem. Muitos colegas duvidaram da veracidade da matéria. Horas depois, no entanto, ela será confirmada com espetaculares fatos novos, pondo por terra todas as dúvidas dos colegas jornalistas.

Cabe esclarecimento: sei como entrei no jogo, mas não tinha noção do papel a desempenhar, como de fato desempenhei. E não apenas eu. Navarrinho também. Não sei se Theodomiro sabia da articulação a me envolver. Bruno Maranhão já morreu. Natur de Assis Filho também, assim como Marco Antônio.

Bruno Maranhão, soubesse qualquer coisa, não me falaria nada: era sempre um túmulo, acostumado a tal procedimento devido aos muitos anos de clandestinidade. Naturzinho, da mesma maneira. Marco Antônio, eu não tinha qualquer relação. A bem da verdade, não me propus a indagar nada sobre tal operação – a operação jornalística do ponto de vista do PCBR, tão bem articulada com os fatos que se seguirão.

Trabalhamos, Navarrinho e eu, dentro dos padrões mais estritos do jornalismo profissional. Isso nos bastava. E não nos foi proposto nada fora de tais padrões. A proposta viera de uma organização revolucionária clandestina, o PCBR, mas não houve qualquer proposição além da própria matéria jornalística. Do ponto de vista profissional, de nossas obrigações, de informar a população, agimos corretamente.

Ética jornalística

A reportagem explosiva podia ser, e foi, uma importante manobra diversionista para o PCBR, no melhor sentido: enquanto a repressão se desgraçava atrás de Theo em São Paulo, ele estava quase no fim da operação a levá-lo para dentro de uma embaixada em Brasília depois de uma fuga histórica. Ao mesmo tempo, a matéria satisfazia ao objetivo, tão caro ao PCBR, de modo especial a Bruno Maranhão, de explorar ao máximo a fuga de Theo, de dar a ela o máximo de dimensão política.

Cabe dizer: o PCBR confiava em mim. Especialmente pelo testemunho de Theodomiro. Então, fui o jornalista escolhido pelo partido para revelar a presença de Theo no Brasil. E eu tinha plena consciência de que podia confiar, sem a mínima dúvida, em Navarrinho.

Ao me envolver na construção da reportagem tinha consciência do significado político dela, embora não tivesse noção de toda a complexidade envolvida, e nem imaginava ter qualquer papel político, embora, sem o pretender, acabasse tendo – e não apenas eu, insisto, mas Navarrinho também.

Pode ter acontecido de o BR ter se reunido, certamente sem a participação de Theo, ainda escondido pelos sertões, e tomado a decisão de me colocar em ação, me pedir para tanto, sem me revelar, como natural em tempos como aqueles, toda a complexidade da operação, até porque não tinha razões para tanto.

Eu tinha noção, consciência de que o melhor naquele momento, ainda muito delicado politicamente porque ditadura ainda, era atuar nos estritos limites da profissão, e o BR só me pediu isso.

Houvesse quedas, prisões, seu eu próprio caísse no decorrer daquela reportagem, e nada disso era descartável sob uma ditadura, tinha à mão a história verdadeira, muito embora isso pouco adiantasse: tivessem convicções, não necessitavam de provas.

Eu era visto, por muitos colegas de imprensa, como alguém que, de um jeito ou de outro, ajudara na fuga de Theo, em agosto daquele ano.  Sempre neguei categoricamente, e a negativa era verdadeira. Mas, àqueles desconfiados, bastavam os indícios. Passara quatro anos na prisão com ele. Era amigo, companheiro de ideais. Quisessem um indício mais forte, e teriam: o filho, nascido em 1975, logo ao sair da prisão, levava o nome dele. Tinham o domínio do fato, como da moda, recentemente. Eu era um cúmplice potencial da fuga, mas de fato, não tive qualquer participação.

Já disse, mas insisto: ao BR só perguntei coisas atinentes à reportagem. Nada mais. Na Bahia e nos pontos cobertos no Rio de Janeiro. Não me preocupei em tentar saber como foi pensada a minha participação na fase final da fuga histórica. O uso do cachimbo faz a boca torta: havia experimentado clandestinidade, e é sempre aconselhável saber pouco, ou nada. Caísse, e estaria pronto para nada falar senão a verdade: havia atuado nos limites de minha profissão, prestado um serviço à sociedade.

Se como decorrência contribuí para a operação, não foi fruto de qualquer acerto entre mim e o BR, como evidente não o foi de Navarrinho. Eu, e tenho certeza também Navarrinho, no entanto, nos orgulhamos da matéria e, de sobra, nos orgulhamos também de termos contribuído para a liberdade definitiva de Theodomiro.  

Enquanto eu e Navarrinho vivíamos as peripécias da operação jornalística, o PCBR seguia com as iniciativas para garantir a chegada de Theo a uma embaixada, de modo seguro. Antes de seguir a caminhada, um esclarecimento. Havia falado de uma casa grande, espaçosa, no Arraial do Cabo, alugada pelo BR. Arraial do Cabo, certo. O resto, não. Era casa de pescador, muito simples, sala pequena, dois quartos, móveis de pedra, de cimento. À frente, areia, nada de jardim.

Era casa alugada por uma jornalista. Ela prefere não ter o nome revelado. Não quer – não se trata de preferir. Ainda não, ao menos. As marcas do passado, as feridas, volta e meia reabrem, as dela e as dos filhos. “Eles podem estar por aí ainda...”. Passado tanto tempo, e o espectro da ditadura permanece como uma sombra sobre a sociedade brasileira. Entrevistei Rosa, vou chamá-la assim, homenageando-a. O nome lhe cai bem.

Começou a aproximar-se da esquerda quando abraçou o jornalismo e conheceu Adauto Novaes. Depois, Ana Muller. Em seguida, Abigail Paranhos. Muita gente. E passou a ter contatos com o BR. Via Marco Antônio, de quem era amiga.

Já correra riscos nada desprezíveis na relação com o BR. Antes de 1979, chegou a acompanhar Bruno Maranhão numa de suas vindas clandestinas ao Brasil, levando-o de carro ao Sul de modo a sair do País em segurança.

Marco Antônio em 1979 pergunta a Rosa se ela podia abrigar uma pessoa na casinha alugada por ela.

– Sem dúvida – responde.

Era lugar apenas para os finais de semana dela, quando lhe sobrava tempo. Então, não havia nenhuma dificuldade. Rosa esteve na casa depois da chegada de Theo, a quem não conhecia. Não soube a identidade dele, nem queria saber. Atitude de quem estava habituada às regras da clandestinidade. Reviu Bruno, este, velho conhecido.

Marco Antônio ousou um pouco mais, ou bem mais. Propôs viajasse com ele e Theo numa viagem até Brasília. Rosa não pestanejou:

– Vamos nessa.

Acostumara-se a correr riscos.

Vejam como as coisas se deram, e disso obviamente eu não sabia, nem eu, nem Navarrinho: entregaram a fita pra mim no Rio de Janeiro naquele 29 de outubro de 1979, e no mesmo dia pegaram estrada.

Seguiam num Opala branco, com ar-condicionado. Rosa era a pessoa mais bem documentada. Portava documentos capazes de desarmar qualquer barreira. Dessa vez, não houve armas. Na viagem a Brasília, viajaram limpos. A documentação de Rosa conseguiria ultrapassar qualquer barreira policial. Confiavam nisso, e estavam certos.

Referências

JOSÉ, Emiliano. Galeria F: Lembranças do Mar Cinzento: segunda parte. São Paulo: Editora Casa Amarela, 2004. 151 p.

JOSÉ, Emiliano. O Cão Morde a Noite. Salvador: EDUFBA, 2020. 426 p.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), O Cão Morde a Noite, entre outros