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Documentário Uma Noite em 67 reconstitui um momento seminal para a história da cultura brasileira

Os números ainda são ínfimos se comparados aos dos blockbusters, mas considerando-se que Uma Noite em 67 é um documentário, com quase 40% do material rodado em branco e preto há 43 anos, a marca de 50 mil espectadores não deixa de ser significativa.

A noite é a do dia 21 de outubro, quando aconteceu a final do 3º Festival de Música da TV Record. É a noite em que a feroz plateia aplaude tanto Roda Viva e Ponteio como Alegria, Alegria; é a noite em que Sérgio Ricardo é acossado pelas vaias e quebra seu violão, é a noite em que os "reis" dos festivais anteriores, Elis Regina e Jair Rodrigues, ficam de espectadores. Mas, sobretudo, é a noite em que foi definida aquela que seria a síntese da música popular brasileira pelos 20 anos seguintes.

O filme de Ricardo Calil e Ricardo Terra realiza-se na simplicidade: a ideia é tão simplesmente reconstituir a história daquela noite seminal para história da cultura brasileira. Entremeadas ao material de arquivo da Record, restaurado e com poucos cortes, as memórias daquela noite pelos seus principais protagonistas ao mesmo tempo recuperam e dão novos significados aos acontecimentos.

Estão ali todos os elementos para entender a "era dos festivais": a busca de um público jovem pelas emissoras de TV, a batalha cultural que se desenrola entre os defensores do nacionalpopular e o curto-circuito pop internacionalista que começa a ser proposto pelos baianos, a emergência de novos ídolos populares como Roberto Carlos e Elis Regina etc.

Mas nada disso está lá com moldura paradidática ou para-sociológica; as imagens é que dão conta de montar o quebra-cabeça do período. Ao mesmo tempo, a maneira como os protagonistas daquela noite recontam tanto os grandes como os pequenos fatos acaba por revelar mais do que qualquer interpretação.

Por exemplo, o que aconteceu com Sérgio Ricardo em 21 de outubro de 1967? As imagens de arquivo mostram um sujeito nervoso: sua música, Beto Bom de Bola, já havia recebido vaias nas eliminatórias, ele volta para a final com um novo arranjo. Se, por um lado, ele concede, por outro, ele provoca, tentando chamar o público à razão. Mas, ali, o público não é movido pela razão: ou bem a canção convence, como no caso da surpresas tropicalistas, ou não. E não haveria arranjo que salvasse Beto Bom de Bola, apesar de ser composta dentro dos cânones do nacional-popular e do formato épico que começava a se consagrar como "música de festival". Assim que começa, a canção afunda ­ e a tempestade de vaias não tarda. Sérgio Ricardo desiste de se apresentar, destroça o violão e atira pedaços do instrumento na plateia.

Mais de quatro décadas depois, de certa forma ainda perplexo, Sérgio Ricardo afirma ter se sentido ­ e reagido­ como bicho acuado. A percepção atual daquele momento joga uma nova luz sobre os acontecimentos. Naquela noite em 1967, ele estava mesmo acuado: se o nacional-popular de extração bossanovística tinha vencido até então, em 1967, um novo pacto, no qual entravam elementos da cultura jovem considerada "alienada", estava se formando.

E essa síntese tem menos a ver com as opções políticas individuais do período do que com um embate dentro da lógica da cultura de massa. Ainda que dessa noite de 1967 tenha saído a música que embalou a resistência à ditadura, todo o campo musical estava empenhado em descobrir para aonde poderia ir a música brasileira nos novos tempos das comunicações de massa. Não à toa, o palco disso tudo é a TV.

Há muitos outros momentos em que a história, tão conhecida e tão interpretada à esquerda e à direita, se ilumina com novas nuances no documentário de Calil e Terra. Os diretores, ambos nem sequer nascidos em 1967, mas herdeiros da tradição musical que começa naquela noite, priorizam com acerto esses micromomentos, em vez de sobrepor mais uma maneira de recontar a mesma história

Bia Abramo Jornalista, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate