Após quatro dias de duras negociações, a Comissão Europeia chegou a um acordo no dia 21 de julho para aprovar o pacote de recursos que comporão o Fundo de Reconstrução da Europa no valor de 750 bilhões de euros para enfrentar os efeitos da crise econômica aprofundada pela pandemia do coronavírus, bem como o Quadro Financeiro Plurianual (Multianual Financial Frame – MMF na sigla em inglês), que vigorará de 2021 a 2027 e norteará o orçamento da União Europeia no valor de 1,074 trilhão de euros.
O orçamento será aplicado e distribuído às seguintes rubricas gerais: mercados, inovação e tecnologia digital; coesão, resiliência e valores; recursos naturais e meio ambiente; migração e administração de fronteiras; segurança e defesa; relações com a vizinhança e o mundo; e administração pública. Pelo menos 30% de seu total deverão ser aplicados em políticas para combater as mudanças climáticas.
O Fundo de Reconstrução que foi o principal objeto das negociações terá como prioridade o financiamento de projetos nas áreas de reconstrução e resiliência; programas como o “Reaja UE", “Horizonte UE", “UE Investimentos” e “Resgate UE"; desenvolvimento rural e o “Fundo Transição Justa”. A rigor, essas rubricas priorizam aportes ao setor empresarial privado, pois a visão ideológica presente pressupõe que o apoio às empresas irá recuperar a economia e os empregos perdidos e consequentemente os salários e o bem-estar da população. Como se a distribuição de renda fosse uma decorrência automática da recuperação das empresas, isso sem falar que o orçamento aprovado inclui investimentos em tecnologia digital que eliminarão postos de trabalho na indústria e precarizarão o trabalho no setor de serviços.
A divergência, que motivou a mais longa reunião da Comissão Europeia dos últimos vinte anos, não foi quanto ao montante do pacote de 750 bilhões de euros proposto inicialmente pelos governos da Alemanha e da França, mas sim sobre a forma de acesso, se por meio de dotações a fundo perdido ou se por meio de empréstimos. Um grupo de países autodenominados “frugais”, composto por Áustria, Dinamarca, Finlândia e Holanda, defendia que o acesso aos recursos somente se desse por meio de empréstimos. No final, chegou-se a um meio termo: 390 bilhões de euros a fundo perdido e 360 bilhões euros disponíveis para empréstimos, ambos condicionados a reformas e com prioridade para recuperação de empresas e projetos ambientalmente sustentáveis. Esses recursos serão amealhados por meio da emissão de títulos europeus, os chamados “Eurobonds”, resgatáveis até 2058.
Os pedidos de ajuda serão analisados e aprovados pela Comissão Europeia com voto qualificado para aprovação e o conjunto da proposta relativa ao fundo terá que ser ainda aprovado pelo Parlamento Europeu e cada Parlamento nacional. O único do qual se pode esperar algum obstáculo é o Parlamento holandês, pois a maioria de seus políticos considera os países do sul da Europa, que estão em pior situação econômica do como perdulários que gastam mais do que podem e não equilibram nunca seus déficits públicos e suas dívidas. Segundo alguns analistas, essa avaliação é hipócrita, pois a dívida privada de um país como a Holanda é três vezes superior ao seu PIB e lhe interessa endividar os países do Sul, pois os fundos de pensão, públicos e privados holandeses, são dependentes dos juros mais altos pagos pelos títulos das dívidas espanhola e italiana, principalmente. Assim, seu Estado de bem-estar social, superior em qualidade ao dos países do sul da Europa, se sustenta a partir dos recursos gastos pelos “sulistas esbanjadores”.
Segundo Yanis Varoufakis, ex-ministro da Economia da Grécia, há outro “bode na sala”. O conjunto do pacote se integralmente aprovado provocará um impacto positivo de 4% em média no PIB europeu. Porém, a queda média da economia dos 27 países da União Europeia foi de 8,3% e da Zona do Euro de 8,7%. Dessa forma, ainda haveria a necessidade de recuperar pouco mais de 4% do PIB europeu por meio de ajustes estruturais e no caso dos países – como Itália, onde a queda prevista é de 11,2%; Espanha, 10,9%; Croácia, 10,8%; França. 10,6%; Portugal. 9,8% e Grécia, 9,0% –, este ajuste teria que ser ainda mais draconiano e variando de 5% na Grécia a quase 8% no caso da Itália, por meio de receitas cruéis que já foram aplicadas após a crise financeira de 2009 e da qual ainda não se recuperaram adequadamente. Os países que têm a melhor situação são a Suécia onde a queda do PIB foi de 5,3%, Dinamarca, de 5,2% e Polônia, de 4,6%, mas ainda assim todos com déficits para além de 2021.
Varoufakis não tem dúvida de que as condicionalidades exigidas pela Comissão Europeia para aprovar as dotações, incluirão algumas das exigências impostas no passado recente pela “Troika” (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia) para ajudar os países do sul da Europa a enfrentar a crise de 2009, como privatizações, favorecimentos fiscais ao setor privado, redução da Previdência social, redução de salários de servidores públicos, entre outros ajustes.
Portanto, os países do sul da União Europeia, que mais lutaram por recursos a fundo perdido, deverão colocar as “barbas de molho” diante da perspectiva de mais pacotes de austeridade em vez de um pacote de desenvolvimento real.
Kjeld Jakobsen é consultor de Relações Internacionais