Colunas | Comportamento

Se vê, da janela do carro ou do ônibus, um Brasil ocupado, quase frenético. Não se sabe em que futuro se vai desembocar. Mas alguma coisa mudou

Nos anos 70, viajar pelo Brasil de carro nas férias era como viajar pelo tempo. Éramos uma família numerosa (pai e mãe, mais cinco filhos), morando em São Paulo e, durante alguns anos, quase todas as férias, viajávamos de carro. Nem sempre iam todos os filhos – a distância das idades, 15 e 13 anos entre os mais velhos e a mais moça, rapidamente fizeram cair de cinco para três os que acompanhavam a família nas viagens. Às vezes, juntava-se um primo ou uma amiga. Mas a cada janeiro ou julho, partíamos de carro para algum lugar.

Qualquer que fosse o destino geográfico, a viagem sempre tinha um caráter de volta ao passado – ou daquilo que eu, criança, sabia e, sobretudo, imaginava sobre o passado histórico do país.

Ainda se encontrava natureza quase intocada, em praias semi-desertas aqui mesmo, pertinho de São Paulo. Indo mais para a direção norte, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, nem se fale. As pequenas e médias cidades do interior também conservavam traços de outras épocas. Se íamos a Minas – e, juntando o favoritismo inequívoco de minha mãe pelos mineiros e o tamanho do estado, sempre no meio entre nós e a Bahia, sempre íamos a Minas –, então, era quase como entrar numa máquina do tempo.

A sensação de retorno ao passado histórico nem sempre se traduzia apenas em paisagens de beleza estonteante ou em ambientes que permitiam uma fruição histórica sem culpas. Era também incômoda, pelos seus aspectos mais duros. A partir de São Paulo e de seu cinturão de prosperidade industrial, entrava-se num mundo do atraso, de miséria mais violenta e descarnada, de estagnação econômica beirando a paralisia. A precariedade se traduzia em condições de estradas, hospedagem e comida piores, o que nos aborrecia como turistas, mas também numa funda, dramática consciência de que alguma coisa sempre estivera e continuava a estar muito, muito errada.

Numa dessas viagens, fomos a Porto Seguro, muito antes de a cidade virar o paraíso de adolescentes endinheirados e descabeçados. Na praia de Santa Cruz Cabrália, aos 11 anos, caminhando pela água cristalina, divisando ao longe os recifes de coral, tive uma espécie de epifania a respeito do encontro do Brasil, imaginando a vastidão do mar que trouxe os portugueses e do medo da travessia, o susto e a excitação de encontrar essa terra imensa e selvagem. Dias depois, a beleza desse momento se esboroou quando fomos visitar o Monte Pascoal e a aldeia de pataxós miseráveis, frágeis e doentes, que vendiam um artesanato estereotipado, feio e disputavam cada moeda que nos dispuséssemos a dar.

Dessa experiência restou a sensação de que o turismo é explorador, por natureza, e, muito mais tarde, a possibilidade de entender como a aventura portuguesa se relacionava à desgraça dos índios.

Hoje, viajar pelo Brasil é uma experiência completamente diversa. Lembra as ilustrações ufanistas dos livros didáticos adotados pela rede pública dos anos 70, que mostravam mapas do Brasil estilizados, cortados por estradas com tráfego intenso de caminhões e atulhados de lavouras prósperas, indústrias de chaminés fumegando, metrópoles com arranha-céus.

A impressão que se tem é de que o país está em franca atividade. Carros e mais carros circulam por cidades pequenas, médias e grandes. Lojas de material de construção tinindo de novas aparecem nas periferias das cidades. Treminhões lotados sujam a beira das estradas com palha e cana queimada. Um ar quente, seco e sujo paira sobre as colinas, quando se olha do alto. Da estrada, se vê máquinas estranhas, desengonçadas e enormes no meio de plantações monotemáticas e silos gigantescos que parecem saídos de filmes americanos ou de paisagens dos países comunistas. No meio de uma estradinha besta, se depara com uma usina fumegante.

São notas impressionistas, por certo, e não têm nenhuma pretensão conclusiva. Nem toda essa atividade consegue esconder os abismos de pobreza e violência.

O fato é que se vê, da janela do carro ou do ônibus, um Brasil ocupado, quase frenético. Não se sabe em que futuro se vai desembocar, ainda. Mas alguma coisa mudou.

Bia Abramo, jornalista