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Na educação, tomando-se o período de 2014 a 2021, temos redução de 28,5% dos recursos. Na saúde, a queda, no mesmo período, foi de 21,6%, na cultura, queda de 90,2%...

Desconstrução. Esta talvez seja a grande e trágica marca do governo atual, advinda na esteira do golpe de 2016. Sei: muita gente vem se debruçando sobre isso, mas creio caiba uma reflexão permanente, tanto pela resistência atual a essa onda, tão essencial, quanto pelo futuro próximo, com a vitória a ser conquistada, confio nisso, pela esquerda e pelas forças democráticas em 2022.

Essa destruição do país, a blitzkrieg sobre as políticas públicas a retirar direitos consagrados, decorrentes de luta de décadas, às vezes é embaçada por uma tragédia de proporções bíblicas, decorrente de uma política governamental genocida da atual administração, desenvolvida conscientemente, em relação à pandemia. Vamos chegando aceleradamente a 400 mil mortos, sem qualquer mudança substancial no combate à peste.

Prioridade é prioridade – vacina e renda emergencial estão na ordem do dia, voltadas à salvação de vidas. A esquerda tem defendido isso corretamente. O isolamento social continua sendo caminho fundamental ao enfrentamento da Covid-19. E nesse momento continuam a faltar vacinas e promete-se uma renda irrisória aos mais pobres, diminuindo-se o número de beneficiários. A esquerda e as forças democráticas devem se bater com todas as forças para que tais prioridades sejam garantidas.

De passagem, cabe dizer ter sido essa tragédia a responsável pelo revigoramento do SUS. Sem esse indispensável instrumento de política pública de saúde, a tragédia civilizatória experimentada pelo país seria ainda maior, o genocídio em curso, um desastre maior, se é possível, e é. Hoje, não há quem não reconheça a natureza indispensável do SUS, embora os recursos destinados ao serviço continuem escassos.

Terra arrasada é uma política. Foi anunciada pelo governo atual. Primeiro, destruir. Depois, olhar os passos seguintes. Não se escondeu isso. Justiça seja feita: o programa está sendo cumprido. À risca. A esquerda, toda ela, deve prestar atenção nisso. Com carinho. Perguntar com insistência sobre o país a receber quando terminar esse mandato, quando nós assumirmos novamente os destinos da Nação. A responsabilidade, óbvio, de tal destruição há de ser dividida entre o governo decorrente do golpe de 2016 e o atual, eleito em 2018.

Deparei, nas últimas horas, com um excelente artigo de Nelson Cardoso Amaral, mestre em Física, doutor em Educação, professor da Universidade Federal de Goiás: “Dois anos de desgoverno – os números da desconstrução”. Sugiro a leitura do texto na íntegra em A Terra é Redonda. Examina despesas realizadas nos anos de 2019 e 2020, e a proposta orçamentária de 2021, relativas à educação, saúde, cultura, gestão ambiental, ciência e tecnologia, refinanciamento da dívida, juros, encargos e amortização da dívida e defesa nacional. Estabelece comparações desde 2014.

E, também, evoluções das despesas com as 69 universidades federais (UFs), com os 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) e dois Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets), com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com a Coordenação de Pessoal de Nível Superior (Capes) e com o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).

A ênfase recai sobre a educação, no sentido mais amplo.

Em poucas linhas, resumo a argumentação inicial de Amaral, deixando de lado a trama golpista, tratada também por ele, envolvendo a deposição da presidenta Dilma e a prisão de Lula, a facilitar a ascensão do atual presidente. Com Temer, recrudescimento dos ideais neoliberais, aprovação da emenda 95, a implicar congelamento de despesas primárias por 20 anos, início da reforma da Previdência, reformas no setor trabalhista, reforma do Ensino Médio, início da destruição da Petrobras, aplainar terreno para o trabalho do governo seguinte.

Com o governo eleito em 2018, o objetivo era desconstruir toda a herança da Constituição de 1988, e, se pudesse, ir além. O atual presidente dirá em março de 2019, sintomaticamente em Washington, ser fundamental “desconstruir muita coisa, desfazer muita coisa para depois começarmos a fazer”. Insisto na importância da leitura do artigo. Aqui, ressalto apenas números a me impressionar.

Na educação, tomando-se o período de 2014 a 2021, teríamos uma redução de 28,5% dos recursos na área. Na saúde, a queda, no mesmo período, foi de 21,6%, com pandemia e tudo. Na cultura, anotem, houve uma queda de 90,2% comparando-se os valores de 2014 e os de 2020. Na gestão ambiental, redução de 74,2% entre 2014 e 2021. Na função ciência e tecnologia, redução de 57,1% nos recursos financeiros aplicados.

O professor identifica clara prioridade no período conferida ao setor financeiro quanto ao refinanciamento da dívida, pagamento de juros, encargos e amortização da dívida. O pagamento de juros, encargos e amortização da dívida teve perfil crescente de 2014 a 2020, passando de R$ 400 bilhões, no primeiro ano, para mais de R$ 650 bilhões em 2020.

Estar atento sempre à EC-95, a congelar por 20 anos as despesas primárias, sem ter estabelecido nenhum limite para as despesas do setor financeiro e nem para a função defesa nacional – aqui, houve um aumento de R$ 37,6 bilhões para o setor de 2015 a 2019, e a redução ocorrida entre 2020 e 2021 ainda representará uma elevação de R$ 25 bilhões em relação ao valor de 2015.

É dramática a situação das universidades. Drástica redução dos recursos para pagamento de água, luz, internet, vigilância, limpeza, terceirizados, aquisição de material de consumo, saindo de R$ 9,0 bilhões em 2014, para R$ 5,5 bilhões em 2021, queda de 38,9%, redução a comprometer “de forma irremediável o funcionamento geral das instituições no ano de 2021”.

Quanto a investimentos, a redução sai de R$ 2,8 bilhões em 2014 para R$ 100 milhões em 2021, queda de 96,4%. Se isso não for revertido rapidamente será inevitável uma degenerescência das instalações das universidades e o sucateamento dos laboratórios de pesquisa de todas elas.

Os IFs e Cefets tiveram acentuada redução nos valores para despesas correntes, passando de R$ 3 bilhões em 2014 para R$ 2,0 bilhões em 2021, redução de um terço para manutenção, a comprometer a continuidade de suas atividades em 2021. A redução para investimentos, mais drástica ainda, chegando a um percentual de quase 100% – 98,6%, passando de R$ 1,6 bilhão em 2014 para praticamente zero em 2021.

Os recursos aplicados pelo FNDE experimentaram uma sangria de R$ 20 bilhões, cotejando-se os números de 2014 e os de 2021 – de R$ 45 bilhões passaram para R$ 25 bilhões, e muitas das ações previstas já estão comprometidas. Os recursos financeiros da Capes sofreram queda de 65,3%. Os dos CNPq, de 69,4%, sempre tomando os anos de 2014 a 2021. Os do FNDCT, de 90,6%.

Terra arrasada, como se vê.

Cito o professor Amaral, palavras de finalização de seu texto:

 “A continuidade desta política de destruição levará inevitavelmente à ‘falência’ das Universidades Federais, dos Institutos Federais, dos Centros Federais de Educação Tecnológica, dos agentes financiadores da Educação Básica e da Ciência e Tecnologia. É preciso que a sociedade brasileira emita, com urgência, um ‘grito desesperado’ de chega de tanta desconstrução e desfazimento”.

Se há a tragédia da Educação, e é inegável, há outras, e algumas delas foram apontadas por Amaral. Sei, e o professor sabe, ser mais ampla ainda a tragédia, o voraz destrutivo, não ocasional, nem sem rumo. Era, é, um programa. A da saúde foi escancarada pela pandemia. A do meio ambiente, a destruição da Amazônia de modo particular está aí, a nos desafiar diariamente. O aniquilamento da Petrobras segue célere, não obstante a luta heroica de seus trabalhadores. A supressão de direitos sociais conquistados desde o início dos anos 40 do século passado não para. O desemprego atinge níveis nunca vistos antes em nossa história, e crescem a miséria e a fome, e a submissão crescente da Nação aos interesses do capitalismo internacional, de modo especial, aos desejos dos EUA.

Nós temos de pensar no nosso programa emergencial, a desafiar a Nação, a exercitar nossa indignação, a desenvolver nossa compaixão diante das mais de 4 mil mortes diárias, já falamos disso, e não podemos descuidar do nosso povo, submetido ao abandono de um governo genocida. Na caminhada para 2022, somos levados a combinar a prioridade em defesa imediata da vida e da renda dos mais pobres, a necessidade da imunização da nossa gente, com as lutas capazes de ao menos minimizar esse processo destrutivo.

Quem sabe, o mundo da educação, da ciência, da cultura, do meio ambiente, possa aproveitar suas virtudes organizativas, sua consciência político-ideológico-cultural, e levantar-se junto contra tanta destruição, dar um basta, dar aquele grito desesperado a que se referiu o professor Amaral. Urgência, temos. Até porque destruir é fácil, reconstruir é difícil. A conjuntura da pandemia nos coloca alguns obstáculos. Porém, já se demonstrou possível a realização de amplas mobilizações online, capazes de sacudir, pressionar o governo destrutivo e genocida. Ousadia, criatividade não faltam. A Universidade talvez possa ser a liderança desse grito da urgência, o grito do basta, o grito de salvação da educação, da ciência, do meio ambiente antes de o processo destrutivo alcançar pontos de não-retorno. A hora é agora. Vamos levar à frente a palavra de ordem do professor Nelson Cardoso Amaral: chega de tanta desconstrução e desfazimento.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 vol.), entre outros