Colunas | Comportamento

Por sua vez, esse novo cinema nordestino é, ao mesmo tempo, contemporâneo e tributário da movimentação em torno do mangue bit ou beat

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo é um filme notável, sob vários aspectos. A começar de seus diretores, que estão entre os mais interessantes dos últimos tempos, Marcelo Gomes e Karim Aïnouz.

O primeiro, pernambucano, dirigiu Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), filme de roteiro engenhoso, sobre a amizade entre um alemão que viaja pelo Nordeste nos anos 1930 propagandeando as virtudes da aspirina e um retirante que sonha em chegar à Amazônia. O segundo, cearense, dirigiu O Céu de Suely (2006), história de uma mulher também cearense que volta à sua cidade de origem e, enfadada com a pasmaceira, encontra uma maneira inusitada de arrecadar dinheiro para voltar para São Paulo.

Ambos são saídos do mesmo caldo de cultura cinematográfica do Nordeste, que teve em O Baile Perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, seu pontapé inicial. Por sua vez, esse novo cinema nordestino é, ao mesmo tempo, contemporâneo e tributário da movimentação em torno do mangue bit ou beat, uma cultura musical que repensava o regional pelo pop e teve seus representantes mais significativos em Chico Science & A Nação Zumbi e Mundo Livre S/A.

Já haviam trabalhado juntos em Madame Satã (2002), primeiro longa dirigido por Aïnouz e com roteiro de Gomes, que apresenta uma versão muito autoral, propositadamente parcial e, por isso, quase sempre irregular da biografia do malandro carioca. De lá para cá, entretanto, cada um exercitou tanto roteiro como direção em projetos pessoais mais afinados e sofisticados.

Em Viajo..., entretanto, Gomes e Aïnouz juntaram esforços novamente para fazer um filme inventivo, estranho e belo. De novo, estamos no Nordeste. Um geólogo viaja para fazer estudos de viabilidade para a construção de um canal que será criado com o projeto de transposição do Rio São Francisco. De início, temos a voz do personagem, listando o equipamento de trabalho (caderneta de campo, martelo, câmera...) e reclamando de ter de fazer a viagem.

Tudo o incomoda, a estrada, o calor, a falta da mulher que deixou em Fortaleza... Vemos imagens de estrada, caminhões, postos de beira de estrada, rochas... A qualidade da imagem assemelha-se ao documental – é como se o personagem estivesse filmando da janela do carro que o transporta. Aos poucos, vamos entrando na narrativa – a mulher, na verdade, o abandonou, o canal vai submergir comunidades, a própria ideia da viagem também se modifica – e adentrando cada vez mais na paisagem natural e humana pelas imagens que se sucedem. Da impressão documental inicial, a narrativa ficcional emerge, sem abandonar, entretanto, o olhar do registro, de distância e da perplexidade do viajante.

Mais não se pode contar sobre o filme em si, sob o risco de estragar, não exatamente a surpresa, mas a possibilidade de ser tomado pela sua originalidade. Talvez uma advertência, a de que não se trata de um filme fácil, de uma história que se desenrola da maneira clássica do cinema, se imponha, a fim de que não se vá ao cinema ou à locadora sem estar pronto para ser desafiado.

Filme todo construído por impressões visuais, por vezes até com imagens que poderiam ser consideradas de baixa qualidade, dele emerge um Nordeste estranho e desolado. Como se a desolação interna do geólogo combinasse com a desolação geográfica e histórica com que costuma descrever o sertão, à qual estamos acostumados tanto pela sociologia como pela literatura e pelo cinema. Só que nesse olhar do geólogo, ele mesmo um nordestino, há também uma busca incessante pela novidade, pelo elemento que vai subverter os clichês, aquilo que pode transformar a distância em proximidade.

O personagem consegue, numa viravolta emocional, para a qual contribuem várias prostitutas de beira de estrada. O espectador também, quando se entrega ao desafio de ir montando o quebra-cabeças dessas imagens, que confirmam, mas também negam o Nordeste imaginário.

Bia Abramo é jornalista, integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate