O debate sobre a reforma administrativa, tema essencialmente de competência do Poder Executivo, retorna de forma improvisada à pauta do Congresso Nacional. A iniciativa, capitaneada pelo presidente da Câmara dos Deputados, parece movida menos por uma urgência nacional e mais pelo desejo de forjar um legado pessoal de sua gestão, em cumprimento a promessas feitas ao mercado financeiro sobre a “transformação do Estado”. Nesse contexto, foi criado um Grupo de Trabalho (GT) com um prazo exíguo de 45 dias, já encerrado, para elaborar um vasto conjunto de mudanças – incluindo emendas constitucionais – sobre a administração pública e sua gestão. Na relatoria, foi designado o deputado Pedro Paulo (PSD/RJ), conhecido por sua visão rigidamente fiscalista e alinhada com as premissas do mercado.
Para compreender a fundo esse movimento, é imperativo contrastar as motivações, os fundamentos e os objetivos de três propostas distintas que orbitam o tema: a notória PEC 32/2020 do governo Bolsonaro; as diretrizes do atual governo federal, sob a direção do Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI); e a nova proposta do GT da Câmara, ainda não oficilializadas. A primeira, de caráter constitucional, era visceralmente fiscalista, orientada para a redução do Estado e um claro ataque aos servidores públicos. A segunda, do governo Lula, pensada no âmbito infraconstitucional, visa o fortalecimento das instituições estatais e à preservação dos direitos e garantias dos servidores. Já a terceira, do GT, que mescla Proposta de Emenda à Constituição (PEC), Lei Complementar e Lei Ordinária, promete um caminho intermediário, mas, na essência, resgata o núcleo duro da PEC 32 sob uma roupagem retórica mais palatável.
PEC 32/2020: a lógica do desmonte e a perseguição ideológica
As motivações e os contornos da PEC 32 são amplamente conhecidos. No governo anterior, a proposta era tratada como o instrumento máximo de ajuste fiscal, cuja expressão mais crua foi o congelamento salarial entre 2019 e 2022 – a famosa “granada no bolso do inimigo”, na declaração infame do então ministro da Economia, Paulo Guedes. O objetivo final transcendia a mera economia de recursos; era um projeto claro de desmonte e privatização de serviços públicos, venda do patrimônio nacional e terceirização ampla e irrestrita, sob a supervisão de um núcleo diminuto de gestores nomeados por critérios estritamente políticos e de confiança.
Essa visão partia de três pressupostos falsos, caros à abordagem da Nova Gestão Pública de viés neoliberal que inspirou reformas nos anos 1990: 1) a suposta superioridade intrínseca do setor privado sobre o público na gestão de políticas; 2) a ideia – amplamente desmentida por dados – de que o servidor público é ineficaz, trabalha pouco e aufere salários excessivos; e 3) a crença dogmática de que o Estado é inerentemente ineficiente, onerando tudo o que toca.
A lógica, portanto, não era apenas fiscalista, mas profundamente persecutória. O delírio ideológico do governo Bolsonaro chegou ao ponto de enxergar nos servidores de carreira uma classe uniformemente socialista e de esquerda, “privilegiados” pela estabilidade e por supostos altos salários. O desmonte do Estado era visto como necessário para que a iniciativa privada atuasse sem a “concorrência” estatal e para que governos liberais pudessem governar sem o suposto “boicote” de uma burocracia técnica e independente.
A perseguição materializou-se em ações concretas: quatro anos sem concursos públicos; salários congelados; aprovação da Reforma da Previdência (EC 103/2019) e da PEC Emergencial (EC 109/2021), que instituiu gatilhos para suspender reajustes, progressões e promoções; e a extinção de espaços fundamentais de diálogo com a sociedade, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (Conselhão) e as mesas de negociação permanente com os servidores. Era um projeto sistemático de asfixia do serviço público.
Governo Lula: interrompendo o desmonte e reconstruindo o Estado
A posse do presidente Lula, em janeiro de 2023, representou uma guinada paradigmática. Seu governo rejeita explicitamente a abordagem fiscalista e considera a PEC 32 uma proposta superada e nociva, por afrontar os princípios constitucionais da administração pública e ser diametralmente oposta à concepção de um Estado forte, presente e indutor do desenvolvimento. Embora o governo tenha se comprometido a pedir a sua retirada da PEC, essa medida não foi concretizada, em vista da necessidade de aprovação pelo Plenário da Câmara.
As diretrizes do atual governo para a administração pública passam por reformas em nível infraconstitucional. Parte-se do entendimento de que a Constituição Federal de 1988 já fornece os alicerces sólidos para um Estado capaz de garantir direitos, prestar serviços universais (saúde, educação, segurança), promover o bem-estar, o desenvolvimento e combater as desigualdades. O foco, portanto, está no fortalecimento das capacidades estatais, na democratização da gestão e na valorização dos servidores, mediante a modernização de estruturas e processos.
Desde o início da gestão, uma série de medidas concretas sinalizou essa nova direção: a implementação do Concurso Público Nacional Unificado; a reativação das mesas de negociação; a concessão de reajustes salariais já em 2023, 2024 e 2025 e a previsão para 2026; a ampliação para 30% das cotas para negros, indígenas e quilombolas nos concursos; a aprovação da lei da equiparação salarial entre homens e mulheres; e a retomada da política de aumento real do salário mínimo, dentre outras.
No MGI, encontram-se em avançada fase de elaboração e negociação propostas cruciais, como a regulamentação da Convenção 151 da OIT (sobre negociação coletiva no serviço público), a garantia de liberação de dirigentes sindicais para exercício de mandato, o combate efetivo a privilégios e supersalários, e a estruturação do Sistema de Desenvolvimento na Carreira (Sidec). Reconhece-se que desafios persistem – como a imposição de tabelas alongadas e a não revisão geral anual para repor a inflação automaticamente –, mas a linha mestra é incontestavelmente de reconstrução e valorização.
Grupo de Trabalho da Câmara: PEC 32 em nova embalagem?
O Grupo de Trabalho sobre reforma administrativa da Câmara surge como uma tentativa explícita de seu presidente de retomar um debate que foi politicamente interrompido com a não apreciação da PEC 32. A estratégia é construí-la sob uma nova narrativa, supostamente consensual, para convencer sociedade, parlamento, governo e servidores de sua “necessidade e conveniência”. Sem debates amplos ou aprofundados, o relator anunciou a intenção de apresentar um pacote com mais de 70 mudanças, abrangendo os três níveis de governo, por meio de PEC, Lei Complementar e Lei Ordinária. O objetivo claro é aproveitar o segundo semestre de 2025, antes que o processo eleitoral de 2026 se inicie, para aprovar a toque de caixa uma reforma de fôlego.
Apesar do discurso direcionado à “melhoria da alocação de recursos”, “fim de privilégios” e “meritocracia”, a essência da proposta é fiscalista e precarizante. Ela prioriza mecanismos como bônus de produtividade e a ampliação da contratação temporária, que, na prática, transferem o risco do Estado para o servidor e fragilizam vínculos trabalhistas. Na retórica oficial, temas sensíveis como estabilidade e recomposição salarial estariam fora de cogitação. No entanto, nas manifestações do relator para audiências do mercado e na imprensa, a lógica do ajuste fiscal é transparente e presente. Propostas simplistas, como a da imposição de uma “tabela única” de vencimentos e cursos de carreira extensos para todos os servidores, são a evidência da fragilidade conceitual das propostas a serem, ainda, formalizadas.
Convergências e divergências: a anatomia do conflito
Um exame mais detido do que foi ventilado pelo GT revela um mapa de convergências e divergências profundas com as diretrizes do governo Lula.
Convergências (pontuais, mas estratégicas):
Concurso Público Nacionalmente Unificado: ambas as visões apoiam a expansão do modelo do CNU.
Governança Digital: fortalecimento da digitalização e transparência na administração.
Combate a Supersalários: endurecimento do controle sobre benefícios indenizatórios que furam o teto constitucional.
SIDEC e Estágio Probatório: ideia de um sistema de desenvolvimento de carreira e um estágio probatório mais rigoroso (embora os detalhes possam divergir).
Divergências (estruturais e profundas):
Bônus de desempenho e metas: O GT pretende instituir um 14º salário e gratificações temporárias condicionados ao cumprimento de metas, vinculando grande parte da remuneração a resultados frequentemente alheio ao controle individual do servidor.
Estatutário temporário: Criação de uma figura híbrida, com contrato por até 5 anos, ampliando drasticamente a precarização do vínculo no serviço público.
Fim do Regime Jurídico Único (RJU): Embora não declarado abertamente, a introdução do "estatutário temporário" e a ênfase em regimes especiais representam uma flexibilização e um esvaziamento tácito do RJU, pedra angular da isonomia e da independência do funcionalismo, já fragilizado pela decisão do STF que validou a fraude ocorrida na tramitação da “reforma administrativa” do governo FHC, que implica na sua desconstitucionalização.
Tabela única de remuneração: proposta de uma tabela nacional, com salário inicial limitado a 50% do topo da carreira, o que pode achatar carreiras e desincentivar a qualificação.
Restrição ao teletrabalho: limitação geral do trabalho remoto a um dia por semana, uma medida regressiva e desconectada das modernas práticas de gestão.
Avaliação para demissão: embora o relator negue, a lógica de avaliações de desempenho atreladas à manutenção do cargo abre um flanco perigoso para a instabilidade.
O momento exige estratégia e vigilância
Diante deste cenário complexo, os partidos de esquerda, os servidores públicos e suas entidades representativas devem adotar uma postura estratégica, clara e vigilante. O momento não é de ilusão com narrativas modernizantes que escondem agendas de desmonte.
É fundamental DEFENDER intransigentemente:
No plano macro: o fortalecimento do Estado como instrumento de cidadania, o fortalecimento da transparência administrativa e prestação de contas e o respeito irrestrito à Constituição de 1988.
No plano específico: A gestão democrática das relações de trabalho, sem prejuízo do fortalecimento do princípio da legalidade; a profissionalização; a manutenção da estabilidade como garantia da imparcialidade; o Regime Jurídico Único; a estruturação de carreiras racionais, reconhecendo a necessidade de respeito às especificidades funcionais; remuneração justa e isonômica; a negociação coletiva efetiva; e regulação do direito de greve, em bases democráticas.
Da mesma forma é crucial COMBATER e REJEITAR veementemente:
O modelo de Estado mínimo.
A pejotização, uberização e precarização do trabalho público.
A ampliação do regime de emprego e de contratos temporários, e a consolidação da contratação temporária em serviços essenciais.
A ampliação de parcelas indenizatórias que rompem com a paridade e a isonomia.
A condicionalidade da remuneração e da própria permanência no cargo a metas de desempenho.
O chamado à ação é por astúcia política. Os servidores e suas entidades podem e devem apoiar a agenda positiva do governo – como o combate a privilégios –, mas não podem se iludir com as propostas do GT e sua eventual “popularidade” e apoio midiático. É preciso expor sua inconveniência e inoportunidade, destacando que o governo já avança, sem traumas constitucionais, na modernização do Estado. A bandeira final não pode ser a do Estado mínimo (PEC 32) ou a da precarização (GT), mas a do Estado necessário e inclusivo: capaz de assegurar crescimento econômico com estabilidade fiscal, inclusão social e serviços públicos de qualidade para todos os brasileiros. A pressa do legislativo não pode ser a âncora do retrocesso.
Antônio Augusto de Queiroz, jornalista, analista e consultor político, mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. Sócio-diretor da empresa “Consillium Soluções Institucionais e Governamentais”, foi diretor de Documentação do Diap. É membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social Sustentável (Cdess) da Presidência da República – Conselhão e da Câmara de Reforma do Estado do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.