Colunas | Mundo

Pode se tratar apenas de um recuo tático na atitude beligerante que o governo Barack Obama vinha adotando, mas há fatos que indicam que a política será mantida

Desde os últimos meses de 2013 há certa inflexão da política americana no Oriente Médio, com a desistência do ataque à Síria, pelo menos por ora, em troca da destruição de suas armas químicas, e com as negociações que levaram a uma suspensão temporária do enriquecimento de urânio pelo Irã, e o consequente abrandamento das sanções econômicas aplicadas pelos Estados Unidos e pela União Europeia ao país. Pode se tratar apenas de um recuo tático na atitude beligerante que o governo Barack Obama vinha adotando, principalmente durante o mandato de Hillary Clinton como secretária de Estado, mas há fatos concretos que indicam que por enquanto essa política será mantida.

No caso do acordo com o Irã, o governo americano enfrentou forte e aberta oposição tanto de Israel quanto da Arábia Saudita e do Qatar. Aliados tradicionais e importantes dos EUA no Oriente Médio, os três países argumentavam que o governo iraniano deveria abolir totalmente seu programa nuclear antes de ser retirada qualquer sanção e de descartar os ataques às instalações nucleares iranianas. No entanto, o lobby do poderoso American Israel Public Affairs Committee (Aipac) para que a maioria dos senadores americanos aprovasse uma nova lei que recrudescesse as sanções contra o Irã, o que obviamente faria fracassar as negociações, foi derrotado graças à pressão do gabinete do presidente Obama sobre a bancada democrata, apesar do apoio republicano e de alguns senadores democratas à proposta. A Arábia Saudita renunciou a sua nomeação para o Conselho de Segurança da ONU em "protesto" contra o que considerou "falta de firmeza" dos membros permanentes em relação à Síria e ao Irã, o que foi considerado um questionamento forte à guinada da política externa dos EUA pelo seu maior fornecedor de petróleo.

A posição americana em relação à Síria é mais complexa, pois o governo Obama fez uma campanha contumaz pela deposição do presidente Bashar al-Assad durante dois anos, além de apoiar materialmente os grupos rebeldes que lutam contra o governo sírio, junto com outras potências ocidentais, Arábia Saudita, Qatar e Turquia. No quadro atual, porém, o governo sírio vem paulatinamente retomando o controle da situação e os grupos rebeldes que ainda têm melhor desempenho militar são os fundamentalistas islâmicos ligados à rede Al-Qaeda, portanto inimigos do Ocidente. Mesmo assim, o governo americano e a imprensa internacional tentem vender a ideia de que, pelo menos um deles, o Ahrar al-Sham, ligado à Frente Islâmica, seria um "grupo moderado", o que é totalmente falso.

Em junho de 2012 houve uma reunião patrocinada pela ONU que se tornou conhecida como Genebra 1, cuja resolução apontou para uma "transição política na Síria" como base para negociar o fim da atual guerra civil e foi aprovada pelas grandes potências, em particular Estados Unidos, União Europeia e Rússia. Na interpretação do governo americano, a transição deve ser sem a participação de Assad, mas isso não está explícito no documento e naturalmente não é aceito pelo governo sírio. Na verdade, para o governo Obama, Assad ficar é ruim, mas se sair é pior, diante do que representaria em termos de instabilidade no país e de ameaça à segurança de Israel, no atual quadro de hegemonia dos fundamentalistas nas hostes da oposição síria.

Organizada sob os auspícios da ONU a partir do entendimento sobre a destruição das armas químicas alcançado entre EUA e Rússia em setembro – com anuência síria, a nova conferência, Genebra 2 (realizada na cidade de Montreux), foi permeada por essas ambiguidades. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, convidou os governos de vários países a participar do processo, incluindo o Irã, ao qual foi forçado pelo governo americano a desfazer o convite, em 24 horas, sob a alegação de que os iranianos não quiseram se comprometer com a resolução de Genebra 1. Provavelmente os EUA não queriam outro aliado da Síria à mesa e, além disso, a oposição síria, que já estava com má vontade de participar, possivelmente boicotaria a conferência devido à presença iraniana. Na prática, o setor da oposição que compareceu não é representativo do conjunto e não responde pelos grupos fundamentalistas como o Al-Nusra, o Estado Islâmico do Iraque e Levante, entre outros, e a comunidade curda que vive na Síria nem sequer foi convidada.

Na prática, desde o início era uma conferência fadada ao fracasso, pelo menos no tocante à possibilidade de iniciar um acordo de paz. Tanto é que o mediador da ONU, Lakhdar Brahimi, traçou uma agenda realista de conversações em torno de três pontos: estabelecimento de corredores humanitários para socorrer a população afetada pelo conflito, libertação de sequestrados e prisioneiros de guerra e um cessar fogo, mesmo que temporário. O governo sírio se mostrou aberto a discuti-los, mas os representantes da oposição não se posicionaram, pois se aceitarem não têm como garantir que os grupos fundamentalistas cumpram o acordado. Por outro lado, condicionar a transição política à renúncia de Assad, ainda mais no momento em que está recuperando terreno, é não querer chegar a acordo algum.

Alguns motivos da inflexão estadunidense se devem a mudanças conjunturais importantes na região, além da possibilidade de uma nova intervenção armada dos EUA no Oriente Médio ser condenada pela maioria da opinião pública americana, sem mencionar que um eventual ataque à Síria pode receber uma resposta armada da Rússia, que não abriria mão de sua única base no Oriente Médio.

Regionalmente, é necessário considerar os desdobramentos da chamada Primavera Árabe. No Egito, os militares, tradicionais aliados dos EUA e sustentáculos da paz com Israel, voltaram ao poder e colocaram a Irmandade Muçulmana na ilegalidade e clandestinidade, o que traz sossego aos americanos no maior país do Oriente Médio. Na Líbia, a morte de Kadafi gerou uma situação caótica e um embaixador americano foi assassinado há cerca de um ano. A Al-Qaeda, que estava acuada na região situada entre as fronteiras do Afeganistão e Paquistão, agora está presente e atuante por meio de diferentes grupos desde o Mali até a Síria, que recentemente ocuparam duas cidades importantes do Iraque. Ou seja, as intervenções americanas na região representaram "um tiro no pé" para quem declarou que a execução de Bin Laden teria sido um golpe fundamental na sua organização terrorista.

Já a possibilidade de normalizar relações com o Irã significaria o acesso a um mercado importante, uma potência regional com uma população de quase 80 milhões de habitantes e PIB superior a US$ 500 bilhões, além de fazer fronteira com países sensíveis para os EUA, como o Afeganistão e o Iraque. Sem mencionar a possibilidade que os persas teriam, em caso de sofrer um ataque americano ou israelense, de bloquear o Estreito de Ormuz, por onde passa a maior parte do petróleo exportado para os EUA e a Europa, o que elevaria os preços do produto à estratosfera, afetando gravemente a economia dessas regiões. Há que considerar também que as relações que o Irã vem estabelecendo hoje com a Rússia e a China podem neutralizar os efeitos das sanções.

A eleição de Hassan Rohani à Presidência do Irã, também vendido pela mídia ocidental como um líder "moderado", forneceu a justificativa para uma aproximação dos EUA com o país. No caso da Síria, está mais difícil encontrar o mote e pode haver retrocessos na atual posição americana se a ofensiva governamental sobre os rebeldes for paralisada ou se os russos vacilarem no apoio ao governo sírio. A política correta é a manifestada pelo governo brasileiro na abertura das negociações em Montreux, que defendeu o fim da interferência externa na questão síria e que sejam os sírios a definir a transição política rumo a uma situação de paz e democracia.

Kjeld Jakobsen é consultor de Relações Internacionais