Sistemas eleitorais são estruturas de incentivos e constrangimentos que convertem sufrágios em mandatos parlamentares. Como tais, não são criações aleatórias e neutras, mas resultam de escolhas deliberadas das elites políticas em disputa pelo poder (Nohlen, 1995; Tavares, 1994). São arranjos estratégico e tecnicamente concebidos para realizar a representação dos interesses sociopolíticos em regimes democráticos.
Dessa forma, os sistemas eleitorais põem em marcha um conjunto de incentivos e constrangimentos institucionais que moldam a racionalidade dos atores políticos em disputa pelo poder (Sartori, 2000; Cox, 1998). Assim, por exemplo, eles afetam o grau de competitividade das eleições, com mais ou menos partidos competindo, o formato do sistema partidário, com multipartidarismo ou bipartidarismo, partidos fortes ou fracos, maior ou menor renovação da representação etc.
Portanto, em sistemas eleitorais do tipo “o vencedor leva tudo”, denominado pluralidade uninominal (plurality), com distritos com apenas uma cadeira em disputa e método de maioria simples – vence o mais votado –, a competição eleitoral mostra-se mais concentrada, há maior desproporcionalidade entre votos e cadeiras, sistema partidário concentrado e menor renovação política (Lijphart, 2003). Como as eleições ocorrem em um turno único, reduz-se o grau de competitividade e incentivam-se os acordos partidários; os partidos/candidatos inviáveis se retiram da disputa em troca de recursos ou de apoios em outros níveis de competição eleitoral.
O efeito psicólogo da maioria simples em distritos uninominais leva o eleitor a fazer uma escolha, que não é sua primeira opção, entre os candidatos viáveis que mais se aproximem de suas inclinações políticas – voto útil (Duverger, 1970).
Por seu turno, a representação proporcional (RP), adotada em larga escala em países democráticos, tem sido reputada como a mais apropriada para sociedades heterogêneas do ponto de vista de lealdades regionais, ideológicas, culturais, étnicas, raciais, religiosas etc. (Lijphart, 2003). Nelas as divergências, que cortam o sistema partidário, podem representar um foco de resistência e deslegitimação do regime. Em sociedades heterogêneas, sistema do tipo “o vencedor leva tudo” não apresenta a flexibilidade necessária que evite a exclusão e discriminação reiterada de minorias sociais.
Portanto, a RP permite maior grau de competição eleitoral, maior proporcionalidade entre votos e cadeiras no Parlamento, formato partidário mais disperso e maior renovação das forças políticas.
A propósito, a Comissão Especial da Câmara aprovou proposta de reforma do sistema eleitoral – prestes a ir a plenário – que cria o "distritão". Diferentemente do sistema distrital, no qual estados e municípios são recortados em distritos, o "distritão" comporta a unidade administrativa como um todo. Os eleitos seriam os candidatos mais votados, até o limite da magnitude distrital (número de representantes de cada estado na Câmara dos Deputados).
A partir de análise empírica do grau de competitividade nas eleições para a Câmara dos Deputados nos distritos de São Paulo e Piauí no atual sistema de RP de lista aberta, com dados das eleições de 2010 e 2014 (coletados no site do TSE), é possível generalizar algumas tendências de efeitos possíveis do "distritão". A comparação entre dois distritos com magnitudes distintas – baixa e alta magnitude – ajuda a “prever” possíveis afeitos do sistema proposto quanto ao grau de competitividade das eleições, o que lança luz sobre a renovação da representação e os custos de governabilidade.
Para iniciar a análise, observemos os quocientes eleitorais dos dois distritos como proporção dos votos válidos. O quociente eleitoral é uma função direta da magnitude distrital (divisão dos votos válidos pelo número de cadeiras), que pode variar conforme o grau de competitividade das eleições (Rae, 1971; Tavares, 1994). Em 2014, o quociente eleitoral de São Paulo foi de 1,43% dos votos válidos, enquanto no Piauí foi de 10% dos votos válidos. Importa destacar que transpor a barreira do quociente em um distrito de magnitude baixa, como o Piauí, impõe custos elevados ao competidor. Esses custos são relativamente menores e mais fáceis de serem transpostos em um distrito de magnitude alta, como São Paulo.
Para esclarecer melhor a questão, observemos as taxas médias de votação dos deputados eleitos nos dois distritos. Como podemos notar, a média de votação de um parlamentar eleito por São Paulo em 2014 foi de apenas 0,80% dos votos válidos, percentual pouco maior que a de 2010, que foi de 0,75%. No distrito do Piauí, essa taxa chegou a 5,97% dos votos válidos, menor que os 6,6% de 2010. Assim, nos distritos de baixa magnitude a barreira do quociente eleitoral impõe custos para a representação de legendas pequenas.
Os efeitos da magnitude ficam mais claros ao analisarmos a votação dos eleitos. Em São Paulo, apenas dois dos eleitos (Celso Russomano-PRB e Tiririca-PR) obtiveram votação expressiva em 2014, de 7,17% e 4,75% dos votos válidos, respectivamente. Mais oito obtiveram entre 1,6 (Rodrigo Garcia-DEM) e 1,07 (Paulinho da Força-Solidariedade), respectivamente. Os demais sessenta eleitos por São Paulo obtiveram votação abaixo de 1%, exatamente na média de votação para o distrito.
Os resultados para o distrito do Piauí corroboram nossa hipótese. Na mesma eleição, dois dos eleitos (Rejane Dias-PT e Atila Lira-PSB) obtiveram votação expressiva, 7,74% e 7,46% dos votos válidos. Mas dos dez eleitos – incluindo Rejane Dias e Atila Lira –, quatro obtiveram votação entre 6,41% e 7,74%, na média para o distrito. Mais quatro ficaram entre 5,24% e 5,75% dos votos válidos, próximo à média. Os dois restantes obtiveram entre 4,66% e 4,76%, não distante da média.
Prosseguindo, analisemos o grau de competitividade das eleições proporcionais nos dois distritos. Em 2010, o número de candidatos em disputa nas eleições para a Câmara dos Deputados em São Paulo foi de 1.031; em 2014 esse número foi elevado em 29,6%, passando para 1.485 candidatos.
Esses dados ficam mais inteligíveis quando observamos a relação candidatos/vagas. Distritos de alta magnitude, como São Paulo, chegam a ter duas vezes mais candidatos por vaga se comparado a distritos de baixa magnitude, como Piauí. São Paulo apresentou um grau de competitividade de 21,72 candidato por vaga em 2014, número que se elevou em relação a 2010 (15,8). Enquanto isso, o distrito do Piauí teve 11,2 candidatos por vaga em 2014, um pouco mais elevado que 2010 (8,6).
Como essas informações podem lançar luz sobre os prováveis efeitos do "distritão"? Em primeiro lugar, elas evidenciam que no atual sistema nota-se um incremento constante do grau de competitividade das eleições proporcionais. Isso, por sua vez, representa robusta possibilidade de renovação da representação, bem como grande insegurança para a elite política parlamentar quanto à reeleição. A exemplo do distrito do Piauí, onde a baixa magnitude eleva a barreira de entrada, observa-se uma redução considerável no nível de competitividade das eleições – metade dos candidatos por vaga de São Paulo.
Com o "distritão", os problemas de coordenação intrapartidária podem se aflorar na medida em que a lógica majoritária obrigará os partidos à parcimônia na concessão de legendas a candidatos inviáveis. Recursos e estruturas serão disponibilizados a competidores considerados viáveis. Com a provável criação de fundo público de financiamento, não apenas a geografia do voto exigirá coordenação intrapartidária – para evitar a dispersão dos votos –, mas a distribuição de recursos escassos precisa ser otimizada. Assim, uma drástica redução da competitividade das eleições terá curso caso se implante o modelo. Se instituições contam, e os efeitos de distritos de baixa magnitude mostram isso, teremos uma draconiana redução na relação candidatos/vagas em todos os distritos, em especial nos de alta magnitude.
Qual o significado disso em termos de representação? Ora, a redução drástica na competição, sobretudo nos distritos de alta magnitude, pode acarretar “esterilização da representação” política. Esse efeito pode se dar mais intensamente nos distritos de alta magnitude, que, a exemplo de São Paulo, apresentam taxas mais elevadas de renovação parlamentar. O incentivo ao lançamento de chapas amplas para fazer quociente partidária, como no atual sistema, dará lugar a um apelo ao não desperdício de votos e recursos escassos com a pulverização de concorrentes.
O sistema, por ser majoritário, não prevê barreira de entrada como quociente eleitoral. Porém, a variável magnitude distrital e o grau de competitividade das eleições – patamares de votos alcançados pelos candidatos – atuarão como barreira à entrada. Se no atual sistema essa barreira é mais fácil de transpor pelos mecanismos partidários de alocação – quociente partidário e distribuição das sobras –, o sistema cederá lugar à lógica majoritária dos “primeiros a cruzarem a linha de chegada”.
Ademais, o "distritão" não levará ao cidadão o ganho informacional do distrito uninominal de tradição inglesa e americana. Os vícios atribuídos ao atual sistema, como a ausência de accountability eleitoral, porque o representante capta voto em distritos geograficamente vastos – sem a vinculação geográfica do sistema distrital –, e a “personalização da política”, já que o eleitor não vota em partidos mas em candidatos, não serão extirpados pela reforma. Embora se acene com a possibilidade de permitir o voto de legenda, persistirão os mesmos vícios, mas com o agravante de destruir de vez os partidos enquanto mecanismos institucionais de alocação da representação.
Por fim, a competição eleitoral em distritos de baixa magnitude, como mostram os dados, já funciona na lógica do que provavelmente será a estrutura de incentivos do "distritão". Em outros termos, são os mais votados, com votações expressivas, em campanhas centradas no personalismo de lógica “prefeitizada”, que serão eleitos. Consequentemente, a “prefeitização” da representação parlamentar, nos moldes do "distritão", trará sérios riscos à governabilidade; o Parlamento se transformará em uma coleção de personalidades “notáveis”.
Bibliografia
COX, Gary W. La Coordenacion Estratégica de los Sistemas Electorales del Mundo. Espanha: Editorial Gedisa, 1998.
DUVERGER, Maurice. Os Partidos Políticos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.
LIJPHART, Arend. Modelos de Democracia: desempenho e padrões de governo em 36 países. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
NOHLEN, Dieter. Sistemas Eleitorais y Partidos Políticos. México: Ed. Fondo de Cultura Econômica, 1995.
RAE, Douglas. Political Consequences of Electoral Law. New Haven: Yale University Press, 1971.
SARTORI, Giovanni. Ingeniería Constitucional Comparada: una investigación de estructuras, incentivos y resultados. México: Ed. Fondo de Cultura Econômica, 2000.
TAVARES, Antônio G. Sistemas Eleitorais nas Democracias Contemporâneas – teoria, instituições, estratégia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
TRIBUNAL Superior Eleitoral. http://www.tse.jus.br/.
Valter Carvalho é doutor em Ciência Política pela PUC-SP, professor e pesquisador na Universidade Federal do Piauí e Uninassau. Autor de Atores Partidários e Entrada Estratégica em Competição Eleitoral de Múltiplas Arenas: A experiência brasileira. Edufpi, 2014 (Estudo sobre os efeitos da verticalização das coligações entre 2002 e 2006)