Estante

Para quem nunca leu Victor Hugo, A Águia e o Leão, excelente antologia de seus escritos políticos e de crítica social, organizada e prefaciada por Walnice Nogueira Galvão, será uma grande descoberta. E mesmo para aqueles que, como eu, o leram bastante na adolescência, mas depois praticamente se esqueceram dele, relegando-o a mero personagem da história literária, esse reencontro não será menos surpreendente e revelador.

Lançado pela Editora da Fundação Perseu Abramo em parceria com a Expressão Popular, na coleção “Pensamento Radical”, idealizada por Antonio Candido, o livro combina com muita pertinência três facetas de Victor Hugo que não costumam aparecer em conjunto: o narrador, o poeta e o tribuno.

Trechos exemplares de seus principais romances (Os Miseráveis, Os Trabalhadores do Mar, Nossa Senhora de Paris, O Homem que Ri) somam-se a alguns de seus melhores poemas de combate civil, quase sempre extraídos do volume Os Castigos, e a esplêndidos – e atualíssimos – discursos parlamentares em defesa da democracia e da justiça social, compondo um mosaico fascinante da obra de Victor Hugo e da sociedade francesa do século 19.

Victor Hugo, que foi provavelmente o escritor mais famoso e prestigiado de sua época, não só na França mas no mundo inteiro, e exerceu notável influência sobre romancistas e poetas dos mais diversos países, teve um destino póstumo paradoxal.

Seus romances nunca deixaram de ser lidos e, ao longo de todo o século 20, foram adaptados inúmeras vezes com sucesso para o cinema e a televisão.

A sua dramática vida pessoal e política também inspirou diversos filmes, em especial os quinze anos de exílio que passou na ilha de Guernsey, um pedaço do território britânico em meio ao Canal da Mancha, fruto de sua intransigente oposição ao autoritarismo e à crueldade social de Napoleão III.

Mas aos olhos da maior parte da crítica literária e do mundo acadêmico, sua obra perdeu prestígio e foi sendo progressivamente secundarizada, como se não estivesse à altura da fama que alcançou.

Não cabe aqui discutir as causas desse desprestígio acadêmico, mas seguramente ele tem a ver com o forte (e, em muitos casos, injusto) preconceito antirromântico disseminado pelas vanguardas literárias do início do século 20, tanto na Europa como em outros continentes, e que pautou negativamente o gosto de muitos dos seus leitores potenciais.

Victor Hugo foi um dos alvos prediletos das vanguardas, que o estigmatizaram como um grande retórico sem transcendência intelectual e artística, dono de um imenso poder verbal, mas a serviço de um projeto literário limitado, de pouca profundidade. Essa foi a imagem de Hugo que acabou injustamente ficando para muitos de nós: a de um escritor dotado de tremenda imaginação e formidável domínio da palavra, mas superficial, preso aos clichês e cacoetes do movimento romântico.

O que a leitura de A Águia e o Leão nos revela é justamente o contrário. Mostra-nos Victor Hugo como uma poderosa personalidade intelectual e política que colocou o seu talento – e a sua articulada visão de mundo – a serviço das causas mais avançadas de sua época, dando a elas uma extraordinária grandeza artística. E mostra-o também plenamente capaz de evitar os chavões e lugares-comuns do romantismo de baixa qualidade.

Nos trechos de seus romances, tão bem selecionados pela organizadora, destaca-se sobretudo a capacidade de criar personagens marcantes, alguns deles inesquecíveis (veja-se, por exemplo, a belíssima, pungente passagem de O Homem que Ri). As trajetórias existenciais desses personagens, não raro trágicas, descortinam ambientes mais amplos e iluminam problemas cruciais da vida francesa. Já os seus poemas de temática social e política, além de comprovarem a tremenda capacidade métrica e rítmica de Hugo, conseguem um feito raríssimo, quase inacreditável nessa arriscada aventura da arte comprometida: poetizar ideias e conceitos conservando toda a emoção pessoal e histórica que os inspira.

Mas, ao menos para mim, a parte mais impactante dessa antologia são os magníficos discursos parlamentares e os textos de intervenção política de Victor Hugo. Sobre temas que não perderam até hoje nada de sua importância: o Estado laico, o sufrágio universal, a liberdade de imprensa, os direitos dos trabalhadores, os direitos das mulheres, a hipocrisia das elites dominantes, a beleza das lutas populares. Todos eles discursos de sólida base doutrinária e rigorosa argumentação, mas tocados por um sopro de altíssima poesia.

Na verdade, seus discursos parlamentares são um verdadeiro monumento à arte oratória, pela força moral, pela profundidade do pensamento e por sua energia verbal. Passam longe de qualquer retórica sem substância. Dão testemunho, isso sim, do nível elevadíssimo que pode alcançar o discurso político quando um grande artista se engaja, por convicção, e jogando a própria vida, na defesa da liberdade e dos direitos do povo.

O livro conta ainda com um ótimo prefácio de Walnice Nogueira Galvão que, além de traçar um panorama das lutas sociais e políticas da época, assim como do contexto ideológico e cultural, faz uma síntese muito instigante da vida e da obra de Hugo. Além disso, é de grande interesse a sua análise da vasta influência do autor de Os Miseráveis na literatura brasileira, principalmente em Castro Alves e Euclides da Cunha.

Luiz Dulci é vice-presidente nacional do PT, diretor do Instituto Lula e ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência