Estante

Marxismo na América LatinaO marxismo já tem uma cidadania latino-americana. Seja como filosofia da ação, como indagação acadêmica ou simples doutrina escolástica, ele tem acompanhado os países que se situam geograficamente abaixo dos Estados Unidos desde fins do século 19.

Já se passou um século, portanto, sem que contemos com uma História do Marxismo no subcontinente. A América Latina figura, quando muito, em notas de rodapé ou capítulos secundários das histórias sobre o marxismo europeu, tais como a História do Marxismo, dirigida por Eric Hobsbawm (Editora Paz e Terra, 12 volumes), e aquela escrita por Predarg Vranicki (Ediciones Sígueme, 1977), publicada em castelhano em dois volumes. Entre nós há só uma recente História do Marxismo no Brasil (em cinco volumes publicados pela Editora da Unicamp). Antologias são ainda mais raras. Algumas, muito gerais − como Os Marxistas, publicada em 1962 por Wright Mills −, quase nada informam sobre o marxismo além do Velho Mundo. E a obra de Luis Aguilar de 1968, Marxism in Latin America, tem os limites de um livro de bolso.

O Marxismo na América Latina, organizado por Michel Löwy, é uma grande contribuição para uma história das idéias e ações marxistas entre nós. Seu critério de escolha, a estrutura da obra e a variedade de temas convidam a uma reflexão sobre a pluralidade do marxismo. O livro apresenta uma primeira seção sobre a introdução do marxismo, com textos do tipógrafo chileno Luis Recabarren e do argentino Juan Justo, o primeiro tradutor de O Capital para o castelhano (Madrid, 1898) – houve só uma outra edição espanhola incompleta, em 1886, feita a partir da tradução francesa. A segunda parte, dividida em cinco seções, trata da variada produção marxista decorrente do impacto da Revolução de Outubro.

A estrutura dos textos mostra como as idéias marxistas, uma vez difundidas de forma descentralizada e sem a ortodoxia reinante de um único centro coordenador, foram mergulhando num dogmatismo estreito (tratado na parte 3: “A hegemonia stalinista”) e só lentamente recobraram sua pluralidade original, expressa em autores isolados como Caio Prado Jr. e C.L.R. James, na seção 4 (“A história econômica e social marxista”), ou José Carlos Mariátegui e Julio Antonio Mella, presentes na seção 3 (“Os primeiros grandes marxistas latino-americanos”). A riqueza do debate marxista e as contradições inerentes ao constante diálogo da teoria com as diferentes realidades dos países da América Latina aparecem em seções sobre maoísmo, guevarismo e trotskismo. Os partidos comunistas também têm seu espaço, tanto na parte sobre a hegemonia soviética quanto na socialdemocratização progressiva a partir do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (1956).

<--break->O critério adotado pelo organizador permite reconstituir o marxismo como história aberta e sem um único centro gerador de teorias e movimentos políticos. As “histórias do marxismo” se detiveram sempre mais no pensamento marxista e, por vezes, nas organizações. O problema de obras assim é que, embora tragam grande conhecimento das ações e do pensamento das cúpulas de movimentos políticos, nada informam sobre o pensamento e aspirações das bases.

Não se trata de uma história social do marxismo. Os partidos comunistas, por exemplo, já contam com um número razoável de dissertações de mestrado, teses de doutoramento e memórias de ex-dirigentes. Mas ainda faltam as histórias regionais e locais, que revelariam, por exemplo, a interação muito íntima do ideário marxista no Brasil com rituais maçônicos e espíritas nos anos 20 e 30 do século 20. Da Revolução Russa pouco sabemos das relações entre algumas tendências bolcheviques com a teosofia, a antroposofia e as leituras nietzschianas. O marxismo prático (enquanto movimento) é muito mais plural do que imaginamos (especialmente onde ele se afasta dos centros difusores, sempre mais ortodoxos). Esse tem sido o caso da América Latina. Uma antologia não poderia dar conta das expressões coletivas das bases de movimentos sociais. Ainda assim aparecem documentos coletivos do MST e do Exército Zapatista, entre outros. Textos que, embora talvez não sejam a própria voz dos de baixo, representam-na com nitidez, expressa tanto nos temas e na função conativa da linguagem como na identidade por vezes quase poética com o sofrimento humano.

A coletânea em questão revela toda a riqueza do debate marxista que se estabeleceu, por exemplo, no seio da Igreja Católica latino-americana por meio de textos de Frei Betto e Enrique Dussel. Uma história do marxismo em regiões deslocadas dos centros difusores originais ainda aguarda uma radical transformação dos próprios meios políticos e acadêmicos. Equipes de pesquisadores precisariam se debruçar não apenas sobre o movimento interno das idéias, mas também sobre os suportes de sua difusão, acompanhando as tiragens dos jornais e revistas, sua distribuição geográfica, bem como o movimento editorial e as bibliotecas de militantes. Dois fatores impediram que tal tarefa tivesse sido realizada.

Em primeiro lugar, o marxismo que foi modismo na universidade dos anos 60 perdeu boa parte de sua respeitabilidade acadêmica. É só nos anos 90 que o marxismo, segundo Löwy, se revitalizou, com novas revistas teóricas e novos pesquisadores em história, sociologia e mesmo economia.

<--break->Em segundo lugar, seja por uma fuga sistemática às questões práticas enfrentadas por partidos de esquerda latino-americanos, seja pelo próprio afastamento dos intelectuais marxistas em relação a tais partidos ou movimentos, o marxismo revigora-se apenas nas margens inorgânicas da esfera política ou em obtusos debates universitários, tão mais acalorados quanto mais se posicionam longe de questões concretas e tarefas factíveis. Índice disso é o fato de que desde os anos 80, quando o marxismo se recolocou em debates públicos especialmente no interior dos partidos e movimentos de massas de esquerda (mas não marxistas), até a atualidade, com a chegada destes ao poder especificamente político em países como Brasil, Venezuela, Bolívia, Chile e Uruguai, houve uma curiosa evolução contraditória: quanto mais a esquerda avança, mais o marxismo desaparece como ferramenta reconhecida pelos partidos políticos de esquerda.

O PT, por exemplo, aparece no livro em dois capítulos. Um sob a pena de Mario Pedrosa. Outro sob a forma de uma resolução partidária (“O socialismo petista”). É possível afirmar que o marxismo foi no PT uma linguagem corrente até o I Congresso (1990). De lá para cá, o marxismo e a teologia da libertação recuaram no PT. Muitas razões podem ser apontadas, desde a própria institucionalização do partido até movimentos internos de centralização burocrática que eliminaram os núcleos de base. Mas isso não apaga a real dificuldade de os marxistas responderem aos desafios práticos de natureza imediata que constrangem uma esquerda latino-americana de massas a governar sob regras constitucionais definidas, apoiadas em minorias parlamentares e sob o cerco de uma opinião pública fortemente marcada por temas liberais.

O desafio da atual esquerda latino-americana de massas será continuar a repensar o socialismo no século 21, sob pena de se igualar aos seus adversários e cair, junto com a própria política democrática, no descrédito crescente diante dos mais jovens. Nessa retomada da discussão socialista, os marxistas têm um papel a desempenhar. Afinal, como disseram Marx e Engels no Manifesto Comunista: “Os comunistas não formam um partido à parte, oposto a outros partidos operários, e não têm interesses que os separem do proletariado em geral”.

Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP e membro do Núcleo de Estudos d’O Capital – PT-SP