Estante

68 - a paixão de uma utopiaTodas as encruzilhadas da humanidade envolvem mistérios. As encruzilhadas e as vertigensA imagem de vertigem usada em referência a 68 devo a uma entrevista que me concedeu Irene Cardoso, do Departamento de Ciências Sociais da USP, sobre um trabalho que prepara a respeito do período.. E esses momentos se resolvem, por fim, pelas múltiplas trilhas por onde seguem seus protagonistas, conhecidos ou anônimos.

E é assim que começamos a assistir ao desvendamento de 1968. A Daniel Cohn-Bendit, o Danny Le Rouge das barricadas francesas de 68, coube escrever Nós que Amávamos Tanto a Revolução (editado em São Paulo em 1987 pela Brasiliense, numa emocionada tradução de Katherina Koltay), um trabalho nostálgico e um tanto arrependido (desde o título) no qual, por meio de entrevistas com figuras que se destacaram a partir dos movimentos de 68 em vários países (no Brasil ele escolheu Fernando Gabeira e Alfredo Sirkis), acaba por decretar a falência de qualquer visão ou possibilidade de transformação radical do mundo. Para Daniel Aarão Reis Filho e Pedro Moraes (das barricadas brasileiras), em 1968 - A Paixão de uma Utopia, a trilha é exatamente a oposta, o que, se de certa forma já se prenuncia no título, enuncia-se claramente na dedicatória ("Aos que não se esqueceram/ nem se arrependeram"), passa pela epígrafe para, por fim, se confirmar sem dúvida na escolha e organização do material, além dos textos propriamente produzidos por Daniel.

O centro do trabalho de Daniel Aarão é o movimento estudantil brasileiro, aquilo que era originalmente "um programa de lutas - específicas - (e que) transformou-se numa sucessão de conflitos - numa rebelião". E esta primeira visão global do "Ano Mágico" está num texto do próprio Daniel, que ocupa 42 páginas e na qual ele transborda os limites da rebelião estudantil brasileira, contexto, razões e dinâmica próprios desses acontecimentos no Brasil, e abre uma panorâmica sobre o que se desenrolava mundo afora, buscando precisar questões postas em jogo nos diversos países, e os núcleos irradiadores das ações.

Na seqüência, temos 42 páginas com 68 fotos (além das demais distribuídas por todo o livro), trabalho de Pedro Moraes. E, nessas "Fotos para a História", o que menos interessa são as lideranças (conhecidas ou não), mas a própria paixão coletiva que precisa ser transmitida ao país da cordialidade, do bom comportamento, dos exércitos de "conselheiros do rei". A ausência de legendas é preciosa neste caso: ao invés dos ícones de santuários ou dos deuses lares, estão ali os anônimos e suas paixões, denunciando aos leitores que sua (dos leitores) utopia não precisa (nem deve) ser sublimada, ou substituída pela fala ou ação do(s) líder(es). O próprio leitor, anônimo, é (ou pode ser) um protagonista. Ou seja, uma canção não consola. Sobram portanto o olho da câmera e a força da ação coletiva. No caso, uma só paixão. À(s) ciência(s) da História certamente competirá decodificar, reinterpretar e repropor leituras para essas imagens - e este é um trabalho importante, mas que se realiza em outro(s) plano(s) de estudo.

Assim, as fotos, ao invés de legendas, são acompanhadas de pequenos textos recolhidos de 1968, pequenas declarações de lideranças, trechos de letras de músicas, diálogos de tiras e policiais, falas de generais, mães, religiosos, palavras de ordem, estrofes, refrões e palavrões de anônimos protagonistas. Essas citações que, de resto, percorrem todo o livro são elementos estruturais do próprio trabalho, da sua concepção polifônica e dessa compreensão, aliás, depende o entendimento da obra.

Usando uma expressão de Enzensberger, "desconhecidos e anônimos são os que falam aqui: um discurso coletivo. No entanto, o conjunto dessas expressões anônimas, contraditórias, unifica-se e ganha uma nova qualidade: faz nascer a história. Foi assim que, desde os tempos mais antigos, transmitiu-se a história: como saga, como epopéia, como romance coletivo. (...) Só o sujeito da História deixa sua sombra. E esta sombra é projetada como ficção coletiva"Hans Magnus Enzensberger, in O Curto Verão da Anarquia, Companhia das Letras.. Em seguida ao bloco de fotos, enfim, "É dado o momento/ de jogar os dados/ nada/ é dado/ tudo/ é conquistado"Félix de Athayde, apud Daniel Aarão Reis Filho, in: 1968 - A Paixão de uma Utopia. : começam os "Depoimentos". São entrevistas com personagens que se destacaram em 68 e que prosseguem hoje, 20 anos depois, militantes e/ou indignados. Certamente, também sobre a interpretação daqueles acontecimentos, a luta continua. O que também é da natureza do discurso coletivo. Alguns dos depoentes -Travassos, Honestino e Jorge Baptista - estão mortos. São perdas irreparáveis, como são irreparáveis as perdas das quatro centenas de companheiros assassinados durante a ditadura militar, e também o quase milhar de ativistas assassinados (sobretudo no campo) durante o governo José Ribamar Sarney.

Chama atenção a reprodução da entrevista concedida por Travassos e Luís Raul à revista Realidade em 68. Apesar do tempo e de tudo, nessa entrevista (cuja releitura hoje é comovente) há algo e um tudo de muito atual. Um atual pelo avesso. Pela ausência. Uma necessidade. E esta sensação se intensifica quando, depois de rolarem os dados das entrevistas de dez dos protagonistas de 68, chega a vez dos depoimentos de Hamilton Feitosa de Lacerda e William Alberto Campos, dois jovens dirigentes de entidades estudantis hoje: tudo por ser conquistado. Nada é dado. O contraponto é dramático.

Agora é como se, de repente (depois e com os doze depoimentos), o relógio da torre houvesse soado as doze badaladas e os dados, ao serem lançados mais uma vez, houvessem se transformado em búzios. Os búzios rolam sob o título de "O que diziam os astros", texto assinado por Rachel Aisengart Menezes, uma interpretação astrológica sobre o ano de 68. De acordo com os astros, tudo estava dado. A revolução estava escrita nas estrelas. Tava sim - o que em si mesmo soa como se ouvíssemos (ou lêssemos) um dirigente político, anos depois de uma derrota, afirmar "nossa linha política foi sempre a justa e a correta". Mas, de qualquer modo, essas são coisas de estrelas...

Na verdade, entre as partes anteriores e esse depoimento astrológico, há uma quebra dramática do trabalho, que significa também a rearticulação de uma nova tensão, esta já introduzida com os depoimentos dos jovens Hamilton e William: o passado e o presente. Essa quebra é sutilmente realçada pelo tratamento gráfico desamarrado, como se decompusesse o rigor da linguagem que vinha sendo perseguida na diagramação das imagens (fotos e ilustrações), embora o desenvolvimento da estruturação gráfica básica dos textos se mantenha no mesmo ritmo. A nova tensão dramática sugere a contraposição entre o sentimento-idéia-vontade-decisão-ação de tomar em suas próprias mãos o destino-história, que caracterizou o movimento estudantil de 68 (e não apenas o movimento estudantil), e uma outra postura que se instalou ao longo dos 20 anos seguintes (pelo menos para uma significativa parcela), de transferir para fora das mãos do homem - no caso, para os astros - a decisão do seu destino. Independentemente da intenção do autor (e esta só a ele compete), no contexto do livro de Daniel, esse capítulo-depoimento funciona como um sinal de alerta, ainda que (et pour cause) carregue toda a ambigüidade com que funcionam os signos abertos. E/ou o humor.

Por fim, o trabalho apresenta uma cronologia mês a mês dos principais episódios nacionais e internacionais de 8 e se encerra com uma bibliografia "Para conhecer 1968".

Infelizmente, a cultura editorial brasileira ainda insiste em manter uma visão brutal e extremamente hierarquizada da organização de sua produção. Somente dentro desse quadro é possível entender a ausência na capa e lombada do trabalho, ao lado das assinaturas de Daniel e Pedro, do nome de Pipsi Munk, a autora do projeto gráfico, diagramação e acompanhamento do trabalho. Por melhores que sejam os textos (e são excelentes), por melhores que sejam as fotos e a pesquisa iconográfica (também excelentes), uma construção do tipo da escolhida para esta edição só pode dar conta de se pôr de pé, com todos os seus requisitos e com toda a valorização que cada elemento carece para se sustentar e se articular com os demais, se contar com a carpintaria de uma artista e artesã da envergadura e sensibilidade de Pipsi (o achado do título é fantástico. Mas, quem poderia desdobrá-lo numa leitura de "68ª paixão de uma utopia"?). Também sob esse aspecto de programação gráfica, o livro é de primeira qualidade: primeiro porque organiza corretamente os espaços no sentido de articular de forma clara para o leitor as diversas informações e múltiplos elementos (fotos, ilustrações, textos, olhos, chamadas, capitulares, títulos etc.). Em segundo lugar porque, utilizando-se de singeleza (resultante de rigorosa elaboração), Pipsi busca integrar (e se integra) o trabalho de seus dois companheiros, sem recorrer em momento algum a qualquer tipo de virtuosismo gráfico que roube para si a cena, em detrimento de Daniel, Pedro ou da compreensão do leitor.

Bom trabalho também são as ilustrações de Cláudio Mesquita.

Enfim, nós que ainda amamos tanto a revolução estamos diante de uma importante publicação neste sentido. Agora, aguardamos para o início do próximo ano um novo livro de Daniel Aarão sobre a esquerda marxista brasileira: A Revolução Faltou ao Encontro. Quem sabe, ela aparece na repetição do ponto! Façamos por onde. De qualquer modo, será outra revolução pois, repetindo Emilienne Morin: "não se faz a mesma revolução duas vezes".

Alipio Viana Freire é jornalista e membro do Conselho Editorial de Teoria e Debate.