Estante

A onda não atingiu só o PT, nem só o Brasil. A derrocada do socialismo burocrático, que durante várias décadas apareceu aos olhos dos trabalhadores como herdeiro da tradição marxista, realentou em partidos de esquerda de todo o mundo os valores do mercado, e a idéia de que o desenvolvimento social poderia ser alcançado sem confrontos entre as classes. Ao longo do século, socialismo burocrático e social-democracia polarizaram o debate - muitas vezes formal e dogmático - que os militantes de esquerda travaram entre si por sucessivas gerações. Quando um dos pólos entrou em colapso, um conjunto numeroso de organizações pendeu para o outro, de modo mais ou menos automático. Outras julgaram que a débâcle era um fenômeno fugaz, e se aferraram com firmeza aos antigos esquemas teóricos.

O livro 1994: Idéias para uma alternativa de esquerda à crise brasileira, que acaba de ser lançado, mostra que pode estar ganhando força, ao menos no Brasil, uma terceira alternativa capaz de desfazer a antiga polarização. Não se trata mais, é bom frisar, da simples oposição simultânea ao "socialismo real" e à social-democracia, algo que já existia há muito. Parece estar surgindo agora, no calor das discussões sobre um possível governo Lula, o embrião de um pensamento que participa propositivamente de toda a pauta de debates - desde a caracterização do período histórico até as linhas gerais para um plano de estabilização econômica - e que talvez pudesse ser qualificado, na falta de denominação melhor, como novo socialismo.

Compilação de nove documentos escritos por militantes ou simpatizantes do PT sobre um programa para a esquerda, 1994 peca pela desuniformidade: os organizadores não se preocuparam em propor uma pauta comum, que estabelecesse o diálogo entre os autores. Ao leitor mais atento fica evidente, no entanto, que os textos travam entre si um debate essencial. De um lado, estão os que não vêem saída senão no mercado, e nas instituições da democracia representativa. Caberia ao governo petista administrar tais instrumentos com honestidade, competência e modernidade que as elites brasileiras não estão preparadas a oferecer.

Os economistas José Márcio Camargo, da PUC do Rio, e José Ricardo Tauile, da UFRJ, são, no livro, os expoentes mais destacados dessa corrente de opinião. José Ricardo é perfeitamente claro. Para ele o objetivo de um governo de esquerda é "promover o desenvolvimento capitalista no Brasil (...) e colocar o Estado em sintonia com as experiências recentes e mais bem-sucedidas do capitalismo contemporâneo".

José Márcio, que trabalha a partir do mesmo ponto de vista, adverte: a idéia de que é possível fazer a redistribuição radical do estoque de riquezas da sociedade "não parece nem factível nem eficiente (...) porque as experiências revolucionárias de outros países, que excluíram o mercado, não podem ser consideradas exatamente um sucesso".

"Se vamos permanecer dentro de uma economia de mercado", prossegue, "precisamos obedecer suas regras básicas. E a primeira é que uma economia capitalista é gerida pela busca do maior lucro possível por parte das empresas".

Tais pressupostos teóricos levarão José Márcio a propor um programa de governo cuja principal característica é a timidez. Ele adverte, logo no início de seu texto, contra as fortes expectativas que a vitória da esquerda pode suscitar: teme que elas levem a "impasses de difícil superação".

Um deles, aliás, tem como uma de suas causas, segundo o autor, as reivindicações salariais. "Qualquer estratégia de crescimento da economia (...) deve ter como uma de suas prioridades o combate à inflação", frisa ele, para em seguida considerar que o surgimento do sindicalismo combativo e da CUT, num quadro em que a Justiça do Trabalho continua regulando as relações trabalhistas, gera uma situação extremamente propícia ao desequilíbrio macroeconômico".

Sempre preocupado em não ferir "os princípios da economia de mercado", José Márcio irá ver como estratégia principal para o combate à pobreza o aumento "da qualificação" dos trabalhadores, já que "as pessoas com um nível mais elevado de qualificação tendem a ter salários reais maiores, porque têm maior produtividade".

Surge então uma proposta ousada. O Estado "pagaria 70 dólares por mês a cada família, para que ela colocasse todos os seus filhos com idade entre 5 e 17 anos na escola pública". O programa, que poderia elevar substancialmente a renda das populações mais pobres, e "elevar a demanda por alimentos e bens industriais de consumo de massa", como destaca o autor, exerceria sobre a economia do país um peso considerável. Consumiria cerca de 12 bilhões de dólares ao ano - mais ou menos o mesmo que o Tesouro transfere anualmente aos grandes grupos econômicos, só na rolagem da dívida externa.

Diante das "conseqüências macroeconômicas" da proposta, o próprio autor sente-se tentado, no entanto, a relativizá-la. Propõe que "a implementação seja realizada de forma paulatina", começando nas regiões mais pobres e nas áreas rurais. Admite, além disso, que, uma vez adotado o programa em uma região, sejam desativados imediatamente "todos os outros programas sociais que ele deverá substituir".

O contraponto às idéias de Tauile e José Márcio aparece, em 1994 em três documentos: o do Sérgio Goldenstein, ex-técnico do Dieese e especialmente os de César Benjamin, membro do Diretório Nacional do PT, e Emir Sader, professor da USP e do Instituto Cajamar. Goldenstein aborda em especial um possível programa de combate à inflação, e propõe um conjunto de medidas baseado na elevação dos salários reais - em especial dos mais baixos. Adverte, com base num retrospecto das pesquisas Seade-Dieese, que só esse tipo de medida tem sido capaz de elevar o nível de emprego.

A contestação de César Benjamim às idéias "administrativistas" apóia-se numa análise de fundo sobre a crise brasileira. Ele aponta e analisa em profundidade o colapso do modelo de desenvolvimento inaugurado após a 2ª Guerra. Está aberta, em conseqüência - afirma -, uma conjuntura em que "a capacidade hegemônica da burguesia está bloqueada". Os ajustamentos que essa classe promove para sustentar as taxas de lucro, lançam o país na desordem". Ao contrário do que ocorreu por décadas a fio, "a racionalidade burguesa não consegue mais articular o conjunto da nação, ou a maior parte dela".

O problema - fustiga Benjamim - é que a própria esquerda "tem operado dentro dos limites dessa racionalidade" em crise. Ele propõe, ao invés disso, que os trabalhadores se lancem a um esforço para articular um novo projeto nacional, que implicaria "substituir a utopia" desenvolvimentista, que animou sucessivas gerações mas esgotou-se, por outra, "radical e generosa, baseada na reforma social, contra o projeto liberal". Tais tarefas estariam assentadas, entre outros aspectos, em impulsionar o consumo dos assalariados", retomar os investimentos do Estado, decretar a moratória da dívida externa e fazer a reforma agrária. Benjamin faz questão de frisar no entanto que um governo de esquerda não pode alimentar a ilusão de que poderá agradar a todos: "a crise não pode ser solucionada sem perdedores".

Emir Sader compara a possível chegada de Lula ao Palácio do Planalto e o governo de Salvador Allende, no Chile. Certamente original, sua avaliação sobre esta última experiência não localiza o erro essencial do ex-presidente chileno nem no "esquerdismo" nem na "conciliação". Allende fracassou, diz ele, porque viu tanto capital quanto poder como coisas a serem tomadas - não como relações que só servem aos trabalhadores se forem inteiramente transformadas.

O erro teria levado o presidente deposto, por exemplo, a expropriar de imediato os monopólios capitalistas, sem impor sobre eles controle dos trabalhadores, ou mesmo lutar por "uma reinserção da economia chilena no mercado internacional". Mais grave que isso foi "confiar no aparelho de Estado", na "posse" do Palácio de Ia Moneda e subestimar "a construção de um novo poder, apoiado na articulação dos elos do aparelho estatal recuperáveis para a estratégia popular com os novos embriões de poder que surgiam nos bairros, nas fábricas, nas empresas, nos campos, nas escolas, nos meios de comunicação".

No Brasil - alerta Emir podem-se produzir erros semelhantes. O PT, que fez crítica notável ao "estrategismo" vazio e formal do Partido Comunista, corre o risco de "passar à miséria da estratégia", a adotar a concepção que "finge que a estratégia não existe", e a disputa de forças antagônicas pelo poder "pode ser substituída pela 'engenharia política"'. O texto adverte, como conclusão: "Centrar nas formas de chegar ao governo federal a estratégia do PT é (...) repetir os erros do passado com nova roupagem; (...) é considerar que as condições de transformar o país estão dadas a partir do aparelho de Estado, tanto assim que a política de alianças não se baseia na unificação de todos os setores sociais subalternos, mas (...) em conseguir os votos necessários para ganhar a eleição. (...) É de repente esquecer que, sem afetar interesses dos poderosos no Brasil, nada de importante poderá ser feito."

Constam de 1994, além dessa polêmica que tende a tornar-se cada vez mais intensa - e mais decisiva para a esquerda -, outros quatro textos de grande interesse. Chico Alencar, vereador no Rio, adverte: o PT corre tanto o risco de virar "bem comportado" e social-democrata, quanto de tornar-se "autista", ensimesmado. Sofre de "eleitoralismo, vanguardismo e internismo". Leo Lince, por sua vez, faz um balanço da ação parlamentar do partido. Leandro Konder cita Caetano Veloso para afirmar, sobre a política cultural, que a esquerda precisa, para compreender o novo, "abrir a porta pra que entrem todos os insetos", ao invés de "abrir as portas que dão pra dentro". E, por fim, Luiz Pinguelli Rosa aponta os riscos da concessão de serviços públicos para particulares - em especial no setor elétrico - e investe contra os mitos neoliberais acerca de ciência e tecnologia.

Enfim, apesar dos choques de posições, cresce no PT a idéia de que a queda do Leste Europeu dá aos trabalhadores o direito de propor uma nova utopia socialista, ao invés de se renderem ao mercado e à social-democracia.

*Antonio Martins é da redação do jornal Brasil Agora.