Estante

60 lições dos 90O livro 60 lições dos 90 - Uma década de neoliberalismo é típico e representativo da inteligência brasileira que, ao longo da década passada, foi desconstruindo os axiomas e dogmas do pensamento dominante. O próprio autor, José Luís Fiori, foi uma das lideranças públicas deste esforço crítico. A década de 90 exibe a edição de quatro obras suas (uma delas, O vôo da coruja. Uma leitura não liberal da crise do estado desenvolvimentista, é a edição tardia de sua tese de doutoramento defendida nos anos 80) e mais quatro títulos em colaboração com outros autores, em especial Maria da Conceição Tavares.

Este último livro, assim como dois anteriores (Os moedeiros falsos e Brasil no espaço), é uma coletânea de artigos já publicados em outros veículos. O que lhe dá identidade é a sua natureza “político-pedagógica”, a sua “função conscientizadora” para “uma população jovem e movida pela indignação social”, como afirma o autor no prefácio. São sessenta artigos antes escritos para o site da Agência de Notícias Carta Maior.

Não se deve desprezar as dificuldades de uma obra que se pretende pedagógica. A história do pensamento de esquerda está repleta de manuais que se tornaram logo obsoletos pelo didatismo excessivo, pela sistematização formal e pela síntese apressada. A obra de Fiori, embora não tenha a pretensão do “rigor de uma reflexão acadêmica”, está muito longe destes erros. O núcleo de seu argumento recusa a banalização e abre sempre possibilidades alternativas para o futuro. Na verdade, o que resulta do esforço didático do autor é um modo – um campo analítico-normativo – de compreensão do fenômeno neoliberal. Ainda no que se refere a sua ambição pedagógica, teria valido a pena uma indicação bibliográfica comentada sobre o tema bem como a citação precisa das fontes de informações e dados utilizados.

Este campo analítico trabalha com temporalidades longas (o que inibe os impressionismos conjunturais) e uma visão ampla e sistêmica do mundo (o que eleva a complexidade do raciocínio). Mas o seu forte – na linha de Fernand Braudel, Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi – é conceber sempre as dinâmicas integradas do poder e dinheiro, do capitalismo e dos Estados nacionais. O economicismo, a mitologia dos mercados auto-regulados, tão típica dos pensamentos neoliberais é assim não apenas criticada, mas superada.

A década de 90 é sintetizada por Fiori como um momento de “grande condensação” e “aceleração” histórica. Ela teria expressado a plena maturidade de sete transformações geopolíticas, ideológicas e econômicas que começaram nos anos 70. Seria uma segunda “grande transformação” – aqui, o autor inspira-se diretamente em Karl Polanyi – que estaria alterando a “face e o funcionamento” do mundo capitalista mas não “suas estruturas e leis fundamentais”. A primeira “grande transformação” teria ocorrido nas décadas iniciais do século XX e, após a crise dos anos 30 e a Segunda Guerra Mundial, deu origem ao welfare state e aos estados “desenvolvimentistas”.

Cabe aqui discutir a década de 90 como unidade histórica de análise do neoliberalismo. É interessante lembrar o livro organizado por Emir Sader e Pablo Gentile, Pós-neoliberalismo – As políticas sociais do Estado democrático (Paz e Terra, 1995). Afinal, a década de 90 foi o período do auge ou da crise do neoliberalismo?

A indagação resulta da temporalidade diversa da dominância neoliberal nos países capitalistas centrais e na América Latina. Mesmo nesta, as temporalidades são distintas para os diversos países. O Brasil viveu neste sentido um ciclo tardio do neoliberalismo nos anos 90. Do nosso ponto de vista, o que a década de 90 evidenciou foi a crise do paradigma neoliberal de regulação do capitalismo mundial. Esta crise foi marcada por grandes tormentas econômicas, deslocamentos políticos e perda de legitimidade do receituário neoliberal. Novas perspectivas, outros modos de pensamento começaram a ter espaço para florescer. A segunda rodada do Fórum Social Mundial é certamente uma das expressões deste fenômeno. É um limite do trabalho de Fiori não tratar de modo mais desenvolvido esta produção, mesmo que inicial, de alternativas.

Os sessenta artigos de Fiori podem ser divididos em três blocos. O primeiro deles dedica-se a expor as teses neoliberais e propor a “revisão radical de seus mitos” a partir da investigação da dinâmica real da sociedade capitalista mundial. O segundo bloco procura investigar as tendências dinâmicas do mundo, particularizando as análises para regiões e países. O terceiro dedica-se a refletir sobre o fenômeno neoliberal no Brasil.

Os dois primeiros blocos são, de fato, os pontos fortes do livro. O mito neoliberal dos mercados auto-regulados é criticado assim como a tese do fim dos Estados nacionais pela globalização. O foco de Fiori é a assimetria do poder dos Estados no plano internacional, com a concentração de poder imperial nos EUA e a redução da já estreita margem de soberania dos estados periféricos, em particular os da América Latina. Protegido pela abordagem da economia política, Fiori faz, então, a crítica aos modos de pensamento típicos da chamada pós-modernidade, da tese do “fim do trabalho” à da emergência da “nova economia”, das visões ingênuas da democratização das instituições mundiais à da emergência de uma sociedade democraticamente gerida com base nas novas tecnologias da informação.

No segundo bloco, o autor mapeia analiticamente as várias linhas de força que movem a cena mundial. Escritos antes dos acontecimentos de setembro de 2001 e da guerra no Afeganistão, os artigos indicam aquela que é hoje a principal contradição da ordem mundial: a incapacidade de os EUA, apesar de seu domínio militar e geopolítico, serem hegemônicos, isto é, de serem líderes incorporando os interesses e anseios de outras nações e povos.

O campo analítico pedagogicamente construído por Fiori mostra-se, no entanto, simplificador e precário quando se põe a analisar os fenômenos que requerem maior refinamento na área da cultura política. Trata-se, sem dúvida, de deficiências decorrentes das “virtudes excessivas” de seu método histórico-estrutural, já bem visíveis em sua tese de doutorado.

O modo como as tradições sociais-democratas e nacional-desenvolvimentistas são sumariamente criticadas não acolhe o critério de uma ponderação histórica equilibrada que deve informar mesmo uma crítica “de esquerda” a estas tradições. Nem os fenômenos europeus chamados da “terceira via”, a busca de uma certa combinação de elementos social-democráticos e neoliberais, podem ser referidos simplesmente como um “factóide anglo-saxão”. E há muitos outros exemplos que poderiam ser dados.

Para o caso brasileiro, em especial, a análise de Fiori apóia-se em conceitos políticos questionáveis. Assim como na sua tese de doutoramento, o autor utiliza o conceito de “era desenvolvimentista” (1937-1990) para abarcar o período varguista, o nacional-desenvolvimentismo e o regime militar. Este tipo de leitura da história não é propriamente de Fiori: já aparece, por exemplo, nas análises liberais de Fernando Henrique Cardoso sobre o regime militar, na década de 70, que pensavam o desafio democrático sob o prisma da oposição entre Estado/sociedade civil. Por este ângulo, a ruptura de 64 – a “construção interrompida” da nação, segundo Celso Furtado – é desvalorizada pela presença do elemento estatista nas duas experiências.

Ora, o paradigma neoliberal, criticado por Fiori, implicou também uma certa leitura histórica de nossos impasses. Assim, compreender o papel histórico decisivo do nacional-desenvolvimentismo, apesar de suas ambigüidades e limites, é um dos momentos importantes da crítica às idéias neoliberais no Brasil.

Juarez Guimarães é professor da UFMG e editor do boletim virtual Periscópio