Estante

Resenha do livro de Robert Owen Paxton

O fascismo é um fenômeno em movimento, não um episódio estático, por isso falamos dele em nosso tempo. Não surpreende o fato de se apresentar com nuances em cada país. Jamais houve um regime fascista ideologicamente puro. Para compreender essa corrente política que, desde 1945, virou um epíteto para acusar quem descumpre normas civilizatórias, Robert Owen Paxton faz A anatomia do fascismo. A primeira edição, em português, é lançada em 2007 e a segunda em 2023, ambas pela editora Paz & Terra. Carla Rodrigues, no Prefácio, sublinha que o exitoso ensaio ajuda a entender “o crescimento da versão do fascismo à brasileira, cujos sinais começaram em junho de 2013, com consequências políticas e eleitorais destruidoras”. O livro é atualíssimo. Vale o esforço.

Ao longo de 460 páginas, o fascismo é examinado com uma lupa por cinco estágios: (1) a criação dos movimentos; (2) seu enraizamento no sistema político; (3) a tomada do poder; (4) o exercício do poder e; (5) a duração do regime e sua opção pela radicalização ou entropia. O cientista político estadunidense procura o “movimento real” ao focar as realidades nacionais, não a sua “essência”.

O enigma da modernidade

Robert O. Paxton cita Alexis de Tocqueville, em A democracia na América (1831), que descreve na visita aos Estados Unidos um lampejo sobre a opressão que ameaça os povos democráticos. “Não se parecerá com nada antes visto”. A adesão das massas a um projeto totalitário ronda, perigosamente, o mundo moderno. Cita Engels no Prefácio de As lutas de classes na França (1895), que crê na ampliação do eleitorado à esquerda para conquistar os votos dos pequeno-burgueses e camponeses, na legalidade. Até prospecta a reação, não o apoio massivo aos reacionários. Cita Georges Sorel, em Reflexões sobre a violência (1908), que critica Marx por não atinar que “a revolução alcançada em tempos de decadência” poderia “tomar como um ideal uma volta ao passado, ou até mesmo a conservação social”. Neste sentido, o autor afirma que “o fascismo foi a grande inovação política do século XX, e a origem de boa parte de seus sofrimentos”. Trata-se de um enigma da modernidade.

O que chamamos fascismo nasce após a Primeira Guerra (1914-1918), em condições subjetivas favoráveis. Em 1897, o prócer do Partido Cristão Social Karl Lueger é eleito prefeito de Viena com um coquetel populista de antissemitismo, combate à corrupção, defesa dos artesãos e pequenos lojistas, e discursos sobre a eficiência dos serviços municipais. O apelo ao empoderamento da nação supera o apelo às classes. Os valores antiliberais entram na moda com o nacionalismo e o racismo e, salienta Walter Benjamin, a “estética da violência” que fornece o húmus intelectual e cultural para o fascismo germinar, além das antigas convenções e limitações estipuladas pela legislação em vigor.

Na Piazza San Sepolcro, no centro de Milão, o fascismo recebe de Benito Mussolini o nome de batismo Fasci Italiani di Combattimento, em 1919. O Duce brada pelo Risorgimento para unificar a nação. Em Munique, com duas mil pessoas, Adolf Hitler nomeia de Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (NSDAP) o Partido “Nazi”, em 1920. O Führer apresenta a plataforma de 25 pontos que mescla um nacionalismo, um antissemitismo, e o ataque às lojas de departamentos e ao capital internacional, com zero de menção às pautas de gênero. A Grande Guerra explica o bolchevismo e o fascismo. Os dois espectros políticos duelam pelo l’esprit du temps, em uma trama shakespeariana.

Era difícil adivinhar que o raio da devastação cairia na democracia liberal. Mas caiu. Em 1922, um filósofo ironiza Mussolini por haver acrescentado à lista aristotélica de maus governos, mais um, a “onagrocracia” dos asnos zurradores. Em 1933, após Hitler imbuir-se chanceler, um romancista suspira ao testemunhar “a revolução contrária às ideias e a tudo o que há de nobre, a liberdade, a verdade e a justiça”. A “ralé vulgar” chegava ao poder, “cercada pelo júbilo da malta”. Não impediu a confissão sobre “certo grau de compreensão da rebelião contra o elemento judeu”. As vítimas da rápida industrialização e da globalização, no início do século XX, foram os ressentidos perdedores da modernização. Qualquer semelhança com os dias que correm, não é uma mera coincidência.

À época, um catedrático francês da sociologia enfatiza a perda do prestígio da religião, da família e do trabalho estável. A sociedade moderna sofre de “anomia”, isto é, “o vagar a esmo de pessoas sem vínculo social”. A “solidariedade mecânica” formada por laços nas aldeias é trocada por uma “solidariedade orgânica” de laços fomentados pela mídia e a propaganda, com o auxílio das ondas de rádio. A vida na cidade sob o capitalismo retira do ser humano as referências identitárias e, junto, a “consciência coletiva”. Quilômetros a nordeste, um historiador alemão vaticina a transição da “Idade da Cultura” criativa à “Idade da Civilização” com multidões desenraizadas, sem contato com o solo e incapazes de atos heroicos e redentores. Especula um “cesarismo” para salvar a Alemanha.

O fascismo não tem uma doutrina aos moldes dos partidos clássicos. Nos “Postulados do Programa Fascista”, redigidos por Mussolini, lê-se que o squadrone “não se sente preso a um tipo particular de forma doutrinária”. O “Duce” (líder) inaugura a rejeição a um programa político concatenado de transformação; substituído pela liderança mítica que se inspira no ativismo. Movimentos fascistas tiram proveito das críticas dos intelectos progressistas ao Iluminismo, por enfraquecerem os dispositivos constitucionais úteis ao status quo, sem oferecer alternativas concretas. O chamado à solidarização nas relações sociais soa abstrato, no teatro absurdo da “guerra de todos contra todos”.

Democratizar a democracia

Os fascistas pretendiam a metamorfose da alma, não do socioeconômico. Queriam reafirmar “o prestígio da Romanitá italiana ou do Volk alemão, ou do hungarismo, ou do destino de algum outro grupo”. Para tal, precisavam de exércitos, de capacidade produtiva, de ordem e da propriedade. As individualidades deviam se submeter à comunidade nacional. A “liberdade pessoal” então escassa recendia o vale-tudo no restaurado “estado de natureza” hobbesiano, para garantir uma vaga na realização da grandeza da pátria. Os direitos individuais não tinham uma existência autônoma, no Rechtsstaat (o Estado de direito). Crianças eram inscritas em organizações do partido, ao estilo das escolas cívico-militares que inundaram a aquarela brasileira, no quadriênio da bestialidade. As atividades de lazer eram controladas pelo Dopolavoro (depois do trabalho) italiano e pela Kraft durch Freude (força através da alegria) alemã. Privacidade era uma prerrogativa dos que dormiam.

Os discursos anticapitalistas eram esquecidos, logo que os fascistas ascendiam ao panteão. “No poder, proibiram as greves, dissolveram os sindicatos independentes, reduziram o poder de compra dos salários dos trabalhadores e despejaram dinheiro nas indústrias armamentistas, para a imensa satisfação dos patrões”, elenca Robert O. Paxton. Os lemas revolucionários eram ajustados para o momento. A “liberdade” para defender o laissez-faire econômico contra a intervenção estatal. A “igualdade” para os talentos da classe média - via escolarização - galgarem os postos de poder e riqueza. A “fraternidade” para serem incluídos na arena do mercado. Assim, se erguia o muro para conter o avanço socialista, com os tijolos do liberalismo, do conservadorismo e do fascismo.

Em geral, os intérpretes destacam a marcante inflexão da cultura para o entendimento da irrupção vulcânica da extrema direita. Mas para uns o colapso das tradições, boas e más, resulta “de uma intoxicação pela destruição como experiência real, sonhando o sonho estúpido de produzir o vazio”. O fascismo não se reduz às raízes intelectivas; é questão visceral e não cerebral. As suas “paixões mobilizadoras” são o desprezo pela política tradicional, a hostilidade à esquerda, o nacionalismo fervoroso e a tolerância ao ódio e à violência, sempre que necessária. A distribuição da propriedade e a hierarquia econômica e social restavam intactas - em oposição diametral à acepção do termo “revolução” a partir de 1789. O apoio ao palhaço sociopata, que dedica o voto no impeachment a um covarde torturador condenado, mostra que a barbárie das décadas de 1920 e 1930 continua viva.

O Posfácio de A anatomia do fascismo é de Rubens R. R. Casara que, afora aproximar os registros normativos do neoliberalismo aos do neofascismo e frisar que as etapas propostas no livro aplicam-se ao bolsonarismo, - salienta a tendência do autor em negar a relação entre o fascismo e o processo de acumulação do capital. Com efeito, a narrativa dialética é descartada desde o introito com o argumento de que, antes de Mussolini consolidar por completo seu poder, os marxistas já tinham pronta uma definição para o fascismo: “instrumento da grande burguesia em sua luta contra o proletariado, quando os meios legais disponíveis mostram-se insuficientes para contê-lo”. Um fragmento extraído da resolução da Internacional Comunista, em julho 1926, no olho do furacão. Para refrescar a memória, Mussolini assume a condição de primeiro-ministro em outubro de 1922. Hitler tenta o Putsch da Cervejaria fracassado em novembro de 1923. É incorreta a observação de extemporaneidade, pois, atribuída aos marxistas na conceituação. O pesadelo durava quatro anos.

Os formidáveis escritos de Trotski sobre a Alemanha em 1929-1933 não são sequer mencionados - e deveriam pois reúnem textos incontornáveis sobre o tema. Trotski percebe a não-correspondência entre o modo de produção e a ideologia dominante. Em determinadas situações, anseios irracionais remanescentes das formações pré-capitalistas pulsam na sociedade burguesa. Em especial, nas classes médias ameaçadas com o empobrecimento, nos segmentos déclassés das elites e nos setores atrasados da classe trabalhadora. Essa “poeira humana” pode se fundir num movimento de massas, mesmerizando um guia carismático e desembocando na brutalidade estetizada do fascismo. Gramsci aparece numa nota de rodapé por reconhecer a autenticidade do apelo popular, embora veja o fascismo como um fenômeno especificamente de classe, “mais que a maioria dos comentaristas”.

Da pesquisa que condensa anos de estudo, Robert O. Paxton depreende os indicadores para uma definição do fascismo: senso de crise catastrófica com soluções de exceção; primazia absoluta ao agrupamento correligionário à revelia dos direitos dos comuns; crença de que seu ninho sofre injustas perseguições para justificar ações sem limites morais ou jurídicos, qual as fake news; pavor à decadência por ingerência dos conflitos de classe ou das influências estrangeiras (o comunismo); integração na comunidade pura, por consentimento ou pela força; chefes naturais (masculinos) e um comandante nacional que encarna a história; aceitação dos instintos negacionistas do líder por sobre a razão universal; celebração da vontade e da violência com direito à dominação na luta darwinista. Termina-se a leitura com uma certeza - é hora de unir forças, defender e democratizar a democracia.

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul