Estante

Capa A classe operária tem dois sexosCom a morte prematura de Elisabeth Souza-Lobo (vítima de um acidente em março de 1991) as Ciências Sociais, o sindicalismo e o movimento de mulheres no Brasil perderam uma de suas personalidades mais audazes e criativas. Exilada no Chile (durante o governo Allende) e depois na França - onde tive o privilégio de conhecê-la e ganhar sua amizade -, Elisabeth voltou ao Brasil em 79 e se tornou, por concurso, professora de Sociologia da USP. Mas a influência de suas idéias inovadoras ia bem além dos círculos acadêmicos.

Espírito heterodoxo e libertário, Elisabeth dedicou seu primeiro livro à vida revolucionária russa e judia Emma Goldmann (Brasiliense, 1983). Em um dos ensaios publicados na atual coletânea, há uma homenagem às "vozes isoladas" que ousaram romper os limites do pensamento tradicional da esquerda sobre a opressão das mulheres: "A anarquista Emma Goldmann escrevia, já em 1906, que nem o direito ao voto, nem a igualdade no trabalho são suficientes para modificar a situação das mulheres na sociedade, se não for rompida pelas próprias mulheres a relação de submissão..."O conjunto dos trabalhos de Elisabeth tinha precisamente por objetivo estudar as condições de possibilidade desta ruptura nas circunstâncias próprias do Brasil.

Os artigos reunidos neste volume se caracterizam por uma rara combinação de rigor científico e compromisso social. Utilizando uma vasta bibliografia tanto brasileira quanto internacional, aproveitando os avanços metodológicos de autores como E.P. Thompson, Joan Scott, Michelle Perrot, Danielle Kergoate e Sheila Rowbotham, Elizabeth produziu uma obra pioneira no campo dos estudos sobre a classe operária no Brasil, sem ocultar seu ponto de vista social: "Se toda pesquisa, como toda narrativa, é um agenciamento, a construção de um olhar, coloquei-me no ângulo da experiência da dominação...".

Trata-se, também, de um trabalho profundamente pessoal: como Elisabeth confessava em um dos artigos, ao repensar o movimento de mulheres no Brasil, tinha a sensação de estar "fazendo a arqueologia de uma problemática e de uma utopia da qual sou parte". Sua reflexão se apóia não apenas em estudos empíricos, estatísticas e ensaios teóricos, mas também em uma experiência direta do movimento operário e do feminismo. Como bem o observa Helena Hirata, em sua apresentação do livro, "ela alimentou o meio sindical e feminista com os resultados de pesquisas acadêmicas e, simultaneamente, a pesquisa universitária com as reflexões e práticas do movimento feminista e sindical...". Este processo de enriquecimento mútuo deu a seus escritos e à sua atuação pública uma coerência e uma unidade excepcionais.

Talvez se possa resumir que os artigos de Elisabeth têm em comum (apesar da grande diversidade temática) em uma fórmula: dar a palavra aos que sempre foram excluídos da voz e da vez - as mulheres operárias. Isto é, tornar visível o que ficou invisível no discurso (androcêntrico) dos atores e cientistas sociais, dos dirigentes sindicais e dos sociólogos do trabalho: a opressão específica da mulher no trabalho e sua participação decisiva nos movimentos sociais.

Os ensaios reunidos na coletânea A classe operária tem dois sexos foram publicados entre 1982 e 1991. Foi um período de transformação profunda na situação das mulheres no Brasil: a população economicamente ativa feminina triplicou entre 70 e 85; as mulheres desempenham um papel cada vez mais ativo no movimento operário e em vários movimentos sociais.

Uma questão-chave que atravessa os capítulos é a divisão sexual do trabalho como o demonstra Elisabeth, não se trata de um processo técnico (e muito menos ainda de uma diferenciação natural e biológica) mas de uma construção social, cultural e simbólica. Tampouco se trata de um processo socialmente "neutro": a divisão sexual do trabalho "produz e reproduz a assimetria entre práticas femininas e masculinas, constrói e reconstrói mecanismos de sujeição e disciplinamento das mulheres, produz e reproduz a subordinação do gênero dominado."

É necessário, portanto, romper com as categorias "sexualmente cegas" da ciência social tradicional para descobrir, através da análise da divisão sexual do trabalho, as hierarquias que se estabelecem entre qualificação masculina e feminina, salários masculinos e femininos.

Rejeitando o gueto confortável de uma história das mulheres em si, de uma ciência feminista em separado, Elisabeth utiliza a problemática de gênero para analisar a questão social entre os sexos. Graças ao conceito de gênero ela pode derrubar as confortáveis distinções entre público e privado, produção e reprodução: trata-se, com efeito, de uma relação social "que atravessa a história e o tecido social, as instituições e as mentalidades, objeto interdisciplinar por excelência, ao mesmo tempo do domínio das teorias sobre família, mercado de trabalho, processo de trabalho, cidadania, partido político e movimentos sociais, tanto quanto da subjetividade". Uma relação social na qual a linguagem e a cultura são fatores constituitivos essenciais.

Enquanto na primeira parte do livro Elisabeth analisa a participação das mulheres nas greves de metalúrgicos, o papel pioneiro do 1º Congresso das Operárias Metalúrgicas do Sindicato de São Bernardo do Campo e Diadema (1978) e os obstáculos a uma maior participação feminina na vida sindical (a dupla jornada de trabalho!), os artigos da última parte estudam os movimentos de mulheres e o feminismo.

Para entender o surgimento destes movimentos - organizados ao redor de reivindicações dos bairros (saúde, creche, transporte, ocupações de terra) - é preciso superar o economicismo: não se trata unicamente de reivindicações materiais mas também da formação de um sujeito coletivo que toma consciência de sua identidade e de sua dignidade. Os grupos feministas, apesar de sua fragmentação, acabaram por fornecer, nos anos 80, a matriz discursiva de muitos movimentos de mulheres que não se definem como feministas. Ao pôr em questão a naturalidade das relações entre homens e mulheres, a "fala feminista" faz muitas mulheres perceberem que a divisão sexual do trabalho e a desigualdade são imutáveis.

Estudando estes movimentos sociais, Elisabeth chega a uma das conclusões mais surpreendentes de sua pesquisa: as novas problemáticas presentes nas "lutas de mulheres" têm sua origem em duas matrizes discursivas bastante heterogêneas - a Igreja progressista e as correntes feministas.

"À primeira vista parece contraditório ver objetivos e resultados comuns nas práticas feministas e na Igreja progressista. Mas os textos e os depoimentos das mulheres que participaram do anos dourados da emergência da questão das mulheres na sociedade brasileira (final da década de 70 e primeiros anos de 80) mostram esta curiosa coincidência das preocupações, que se confrontaram nos congressos de mulheres, nos últimos encontros de trabalhadores industriais, de camponesas, nos grupos e encontros feministas, nas lutas e campanhas contra a violência, pelo acesso à saúde e mais tarde nos conselhos de mulheres regionais e nacionais."

"Não são discursos iguais, mas o importante é que ambos valorizam as mulheres como pessoas, com direitos e deveres, e sobretudo interpelam tudo aquilo que parecia para sempre definido: a submissão das mulheres em casa, no trabalho e na vida pública. Nesse aspecto coincidem."

É graças a espíritos iconoclastas como o de Elisabeth Souza-Lobo que a ciência social poderá algum dia superar sua "cegueira sexual" e o movimento sindical seu economicismo androcêntrico. Estes artigos são sementes do futuro.

Michael Löwy é pesquisador no CNRS(Centre National de Recherches Scientifique)