Estante

A contestação necessáriaA reedição de A Contestação Necessária – Retratos Intelectuais de Inconformistas e Revolucionários, pela Expressão Popular, vem à lume, celebrando vinte anos de sua primeira edição e também do cenário político e intelectual brasileiro sem seu autor, Florestan Fernandes. Dividido em três partes – “O intelectual e a radicalização das ideias”; “Prática política radical”; e “Reforma educacional: a contribuição de Fernando de Azevedo” –, o livro reúne quinze retratos de homens cujas trajetórias, ideias e atuação pública ensejam uma preocupação de longa data do sociólogo. Interessa, para ele, “a questão de como as ideias, produzidas pelos intelectuais, transformam-se em conhecimento crítico (ou não) e, por sua radicalidade, engendram forças sociais, através da orientações inconformistas ou rebeldes dos trabalhadores e de outros grupos de uma sociedade acentuadamente fechada às mudanças sociais (...)” (p. 34). Já não fosse muito, há mais.

No conjunto, esses retratos foram concebidos num momento em que Florestan Fernandes entregava-se à vida política que lhe foi possível. Embora sejam reiteradamente lembradas suas origens modestas, e a ética do trabalho que desenvolveu para contorná-las, nem sempre se extrai disso a observação mais simples. Em sua juventude, o aspirante a sociólogo aderiu à vida profissional em detrimento da militância. Entregou-se de corpo e alma ao trabalho, como arrimo de família sem herança ou parentes importantes. Se for correto afirmar que esse trabalho foi nada mais, nada menos do que tirar a Sociologia brasileira do patamar de diletantismo no qual patinava até meados dos anos 1950, fazendo dele o maior representante da modernidade dessa disciplina, Florestan talvez nunca tenha se sentido inteiramente à vontade com o abandono da militância.

Nas entrelinhas, é o drama dessa escolha (impossível) que está no coração do artigo sobre Hermínio Sacchetta, e o apoio amigo que ele representou, quando Florestan, “tendo de trabalhar para ganhar a vida, pois o salário de assistente era baixo demais, combinava tarefas no mundo prático com os artigos para a Folha e o Estado, que roubavam tempo que o pessoal queria ver investido a ação política” (p. 160), precisou abandonar o trotskismo. Não surpreende a intensidade com que se dedicou à militância (que lhe foi) possível após sua aposentadoria compulsória, pelo regime civil-militar em 1969.

O livro em questão documenta essa fase de seu percurso, pois reúne os retratos dos “inconformistas” e “revolucionários” concebidos de modo relativamente livre das “obrigações científicas” do campo acadêmico que outrora era o seu e atrelados aos imperativos éticos impostos a si próprio. São esses imperativos, diga-se de passagem, que acionam o click dos retratos que compõem um álbum coerente – a despeito da diversidade do espectro, indo de Gregório de Bezerra a Roger Bastide, passando por Henfil. Há, no final das contas, algo de Florestan em todos eles.

Aposto que se fosse um álbum de família que se revisitasse, um momento de suspiro, ao se virar as páginas seria o retrato de “Lula e as transformações do Brasil contemporâneo”. Em 1994, escrevia Florestan: “Depois de ouvir vários pronunciamentos e opiniões dos que não chegam a compreender a grandeza de um candidato com o passado, o presente e o futuro de Luiz Inácio Lula da Silva, e movem contra ele uma campanha de difamação sem precedentes e também sem dignidade, achei que seria oportuno reunir algumas reflexões que colocam o Homo politicus na esfera da razão” (p. 50).

É dela que se precisa atualmente. Sobretudo se atinarmos para o momento atual como um processo de curta duração em que pipocam atavicamente traços estruturais da formação social e política brasileira. No cenário atual, jovens e adultos destituídos da cultura política que formou seus pais e avós vociferam palavras de ordem cujo sentido são tão incapazes de exprimir quanto são experts em alardear. Esses traços estiveram em operação em 1994 (a eles alude Florestan) e também na cobertura espetacular do “julgamento do mensalão”, no verniz de bom gosto do jornalismo marrom e dos intelectuais de segunda categoria comprados pelos cartéis da informação, nos cartazes mal redigidos das recentes passeatas: “tamanho fluminense”, diria José de Alencar. Como não reconhecê-lo? Trata-se do típico lero-lero classista e ressentido das elites periféricas improdutivas e menores no mercado global cuja dominação depende das necessidades simbólicas do “povo médio” de não se confundir nem se misturar com o “povo povo”. Isso requer, na divisão social do trabalho de dominação, uma imprensa que lubrifique a violência em jogo, amplificando o espaço social dos agentes sociais cuja nobreza de caráter, pureza edificante e integridade engrandecedora unifique dominados semi-inocentes e dominantes semiconscientes.

Não foi algo dessa ordem que se observou na sincronia entre cobertura midiática da nobreza dos magistrados e intelectuais do senso comum de plantão, a serviço das demandas simbólicas do “povo médio” bem informado? Não seria uma das fontes da pose das elites como representantes exímias de um esclarecimento de fachada, repleto de gafes; de valores morais (honestidade, integridade, lisura) cuja prática não conhecem, mas de cujo re-conhecimento-des-conhecimento dependem? Nessa mesma direção, segue a ladainha de discursos e imagens, que estigmatizam os percursos políticos que combinam ascensão social, inconformismo político e jogo de cintura – caso de Lula. Se essas habilidades e características andassem separadas ou fossem atributos dos membros iguais dessa mesma elite, a aberração seria menor, e, claro, não seria notícia.

O que se vê – pois o espetáculo é televisivo – na última década é a estigmatização, antes concentrada na pessoa de Lula, amplificada para o staff político do PT, de seus militantes, de seus eleitores. Não há muito segredo nisso, embora explicar sociologicamente os últimos dois anos em termos de tomadas de posição política, sem se deixar seduzir pelas “categorias dos novos nativos”, seja problema na ordem do dia.

Como não se tem Florestan Fernandes para perguntar o que ele teria a dizer a respeito da hora atual, resta tentar pensar com ele. Por isso, a reedição deste livro é tão bem-vinda.

Lidiane S. Rodrigues  é professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (DCSO-UFSCar). É autora de Florestan Fernandes: Interlúdio (São Paulo: Hucitec, 2010)