Estante

capa livroOs escritos de Eder Sader, nesta década de 80, são um debruçar inquieto e incessante sobre as condições nas quais se formam sujeitos políticos coletivos - ou seja, aqueles movimentos sociais formados e impulsionados por suas experiências de confronto e com presença autônoma diante do poder. Em seu conjunto, formam uma reflexão aberta sobre si mesma, como também o foram os movimentos sociais que estudou; ambos, reflexão e ação, têm suas categorias próprias, o seu tempo, seu espaço, suas identidades, suas oscilações. Longe de quaisquer certezas conclusivas, Eder anotou e fez seus os gestos contínuos da reinvenção da política, da vontade de ação autônoma e das identidades formadas nos movimentos sociais.

O ponto máximo desta compreensão dos movimentos é este seu livro, Quando Novos Personagens Entraram em Cena. Nele, a década de 70 aparece povoada de movimentos sociais tão diversos como a oposição metalúrgica de São Paulo, os clubes de mães e o movimento de saúde da zona leste desta cidade, a revitalização do sindicato de metalúrgicos de São Bernardo, através deles, abria-se para a sociedade uma possibilidade de renovação radical da vida política e uma promessa insuspeitada de alternativa de poder. Que essa tenha sido derrotada, neste final da década de 80, não altera o empenho vital de Eder em registrá-la; pelo contrário, é a derrota dos movimentos sociais no plano da política instituída que fornece o parâmetro para pensá-los - e eles ainda emergem, nesta análise, como a referência mais próxima e concreta da aspiração de todos nós a uma democracia real, mais ainda diante do engodo da transição política autoritária do país.

Que esta promessa se mantém atualizada prova-se no modo como foram registrados os movimentos sociais neste livro. Sem pensá-los como tendo uma origem essencial ou espontânea. Eder os mostra como formados de práticas, falas e interpretações pouco a pouco construídas, de múltiplas maneiras, por diferentes pessoas cujas experiências puderam, no entanto, ser conjugadas. De suas diferentes percepções, diferentes formas de organização e diferentes enfrentamentos nasce uma vontade coletiva de ação na luta por diferentes direitos. O gesto fundamental de Eder, ao não banalizar e sim valorizar as aspirações de justiça, igualdade e solidariedade como ímpetos concretos da ação política, permite-lhe perceber a procura interminável desses movimentos em se fazer autônomos e seu repúdio às formas de práticas políticas instituídas. Por isso ocuparam o lugar principal da promessa, por isso perturbaram a retórica: os direitos procurados dão acesso à experiência da ação política coletiva e levam à exigência de uma estratégia conjunta. Por outro lado, a análise mostra que tampouco esses movimentos sociais foram dirigidos, no sentido político clássico desta palavra. A Igreja e suas CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), nomeando "o povo das comunidades" e o "caminho da libertação"; a esquerda marxista dispersa, em plena crise do vanguardismo derrotado e procurando ligar-se às lutas concretas como ação e discussão; o sindicato, confrontado com sua falta de representatividade e com o alheamento das lutas reivindicativas dos trabalhadores, buscando um espaço de ação entre as brechas legais da institucionalidade estatal e um encontro com a contestação nascida da fábrica - todos eles formam o que Eder chama de "matrizes discursivas", ou seja, falas, lugares e práticas também em movimento e, portanto incapazes de fazer valer categorias prontas.

Para além dos recursos e discursos da política já conhecida, os movimentos sociais tornaram manifesta uma apropriação de mundo que juntou experiências vividas com ação conjunta, uniu de modo inédito ambas com a política e assumiu o risco de jogá-las num mesmo lance. Por momentos tão desiguais como os ritmos de suas histórias, mostra Eder, eles ocuparam e redefiniram agilmente as distâncias entre a vida cotidiana e o espaço público, reposicionando a racionalidade burocrática e autoritária do governo e também as longínquas discussões das estratégias políticas já elaboradas. Pois sua ação e identidade não cabiam nos cenários públicos já instituídos, nem em um conhecimento prévio da política. Como entender, há 15 anos atrás, a esfera da vida privada e do cotidiano obviamente presentes no comunitarismo dos clubes de mães e no movimento do custo de vida, e que no entanto, chegaram a confrontar as autoridades públicas de modo não-clientelista, mas sim politizado, sobre estas mesmas bases? Do mesmo modo, como ter entendido que a oposição a um sindicato, desarticulada por uma repressão extrema no plano da própria entidade, tenha conseguido construir uma organização independente, capaz de resistir às ofensivas da repressão estatal e ao mesmo tempo constituir uma nova identidade dos trabalhadores - na base de uma pluralidade de mobilizações locais e diferenciadas de fábrica? Da mesma forma, não foram poucas as incompreensões a respeito da ação de um sindicato que, não obstante estar preso no cerco da legislação, consegue ser ativo nas lutas fabris contra o despotismo patronal a um ponto em que, com greves cada vez mais representativas, tenha se tornado um sindicato de massas, simultaneamente abrindo espaço para a alteração do trabalho fabril e para a representação dos trabalhadores como interlocutores políticos reais (e temidos) na transição então em curso. Sob esta ótica, os movimentos sociais continuam a ser, no mínimo, uma questão real e presente; seu impacto não mais pode ser medido por qualquer noção de "eficácia" diante do poder, mas sim, como insiste Eder, no desvendamento público da sua interioridade, isto é, de suas múltiplas origens, motivações e confrontos carregados de autonomia e de história. Entendê-los por sua derrota, algum tempo depois, não é dispensá-los como alternativas políticas, mas saber que suas promessas podem ser reatualizadas. A análise de Eder Sader, que permite este olhar simultaneamente interior e exterior dos movimentos sociais, nos lembra que há incessantemente, novos pontos de partida.

Maria Célia Paoli é professora do Departamento de Ciências Sociais da USP.