Estante

Leandro Konder começou a pesquisa que o levaria a escrever A Derrota da Dialética após o golpe de 64, "como parte do esforço para compreender por que a esquerda avaliara tão mal, a situação e fora derrotada." O trabalho evoluiria até chegar a uma tese de doutoramento em Filosofia, apresentada à UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Fixando-se no exame do desenvolvimento do marxismo no país até o começo dos anos 30, Konder procura demonstrar que "o pensamento de Marx - tal como foi trazido para o Brasil e assimilado pelo nascente marxismo brasileiro - sofreu a perda de sua dimensão dialética; esta perda foi determinada por fatores ligados à história do socialismo como movimento mundial, em conjugação com fatores característicos da vida social e cultural de nosso país" (p.45).

Konder começa o livro com uma nota metodológica sobre a dialética, e segue com um capítulo em que examina a evolução internacional do marxismo até a derrota da dialética, no interior de um marxismo-leninismo que era, na verdade, uma doutrina elaborada após a morte de Lenin, sob a direção de Stalin. Doutrina esta que servia pragmaticamente às necessidades do partido e da qual estavam ausentes, além da dialética, várias categorias centrais do pensamento de Marx, como a de praxis revolucionária, e com ela toda a concepção marxista da história. Na verdade, a função do marxismo-leninismo de Stalin era "preparar os militantes políticos para a aceitação disciplinada das palavras de ordem emanadas da direção" (p.44). Com o stalinismo, o marxismo e o leninismo foram domesticados e esterilizados.

Mas, se no livro Stalin fica bem caracterizado como um mau filósofo, um pragmático e um péssimo dialético, não se torna claro o significado social e político do stalinismo. Provavelmente um tratamento mais amplo desta questão poderia enriquecer muito essa investigação.

O ponto alto do livro é a luz que lança sobre a formação do PCB (Partido Comunista Brasileiro). Podemos dividir esta história em dois momentos: da chegada do marxismo até a queda de Astrojildo Pereira da secretaria-geral do PCB, e daí em diante.

Na primeira fase, é ressaltado o pouquíssimo conhecimento do marxismo no Brasil, (o que dá margem a não poucos episódios pitorescos, citados no livro). A primeira edição brasileira integral do Manifesto Comunista, por exemplo, é de 1923. Até a revolução russa e a fundação do PCB, em 1922, a hegemonia na esquerda brasileira é dos anarquistas e o marxismo aparece sempre confusamente mesclado com idéias anarquistas (além de evolucionistas, cientificistas e positivistas). Com a fundação do PCB, a situação começa a mudar. Mas as tentativas realizadas durante os anos 20 para interpretar a realidade brasileira à luz do marxismo são ainda muito toscas, como o livro Agrarismo e Industrialismo, de Otávio Brandão, o mais ambicioso da época. O mais difícil era compreender a dialética: Brandão a reduz à tríade hegeliana (tese-antítese-síntese), e faz dela uma aplicação extremamente forçada e formalista.

Depois da queda de Astrojildo da secretaria-geral (promovida pelo Secretariado Sul-americano da III Internacional), a coisa fica ainda pior "essa derrubada significava o fim de uma era: já não se tratava mais de procurar, embora canhestramente, interpretar a realidade brasileira à luz de um marxismo capaz de se renovar em contato com uma realidade singular, inédita; tratava-se de receber de fora um 'marxismo-leninismo' codificado e aplicá-lo ao Brasil, de acordo com as instruções estritas do produto importado" (p. 165).

Konder mostra que o domínio do stalinismo sobre o PCB foi muito favorecido pela influência positivista, muito forte no Brasil: "O stalinismo, que procurava se instalar na vida política e cultural do Brasil no começo dos anos 30, podia oferecer àqueles que tinham sido educados pelo positivismo imponentes esquemas classificatórios e fórmulas concisas, límpidas, semelhantes às que celebrizaram Augusto Comte (...) Permanecia o vezo de procurar em uns poucos livros, condensada, a essência de tudo aquilo que se podia saber, cientificamente, a respeito da sociedade humana" (p.182). Também o obreirismo que dominava o PCB favoreceu a consolidação do stalinismo: "ajudou a preparar o terreno, na cabeça dos militantes do PCB, para a ampla aceitação de uma teoria desprovida de sofisticação, tosca e Pragmática, como era aquela que passaria a lhes chegar, sistematicamente, da União Soviética, na forma da vulgata ‘marxista-leninista’" (p. 176).

Não há dúvida de que Konder dá sua contribuição para o entendimento das limitações teóricas da esquerda brasileira em 64. Os traços adquiridos na fase inicial, que ele analisou, marcariam toda a história do PCB, amplamente hegemônico na esquerda brasileira até aquele momento.

Além da "derrota da dialética" outros elementos trazidos pela III Internacional, subordinada ao stalinismo, pesaram de forma extremamente negativa na visão teórica do PCB. O golpe de 64, que motivou a pesquisa de Konder, estimulou também a crítica da visão etapista, reformista, do reboquismo com relação à burguesia nacional. Foi a partir desta crítica que a esquerda revolucionária se desenvolveu nos anos 60 (com muitas limitações próprias, como Jacob Gorender indica em Combate nas Trevas). Nos anos recentes, outra crítica tem sido feita, com razão, às antigas orientações do PCB: a subestimação da questão da democracia, sua visão instrumental desta.

Para nós, do PT, a experiência do PCB - primeiro partido de trabalhadores e socialista a ter uma influência real no país - é parte substancial de nosso passado e de nossa herança. Compreendê-la criticamente é decisivo para superá-la. Daí a importância do livro de Leandro Konder.

João Machado, membro da Executiva Nacional do PT e do Conselho de Redação de Teoria e Debate.