Estante

A ditadura envergonhadaCom A Ditadura Envergonhada (v.1) e A Ditadura Escancarada (v. 2), os dois volumes iniciais do projeto que chamou de “As Ilusões Armadas”, Elio Gaspari mostra uma história do Brasil que nos perturba. Como tudo foi acontecendo e virando fatos consumados, até torturas e assassinatos de pessoas? Gaspari, jornalista que conviveu com personagens de sua história, desenvolveu uma pesquisa de historiador rigoroso e com distanciamento crítico de suas fontes.

O texto é bem escrito e elabora uma interpretação do processo histórico da construção e extinção da ditadura militar centrada em idéias e ações dos militares. Consegue dar vida aos fatos partindo dos personagens general Golbery e presidente Geisel, presentes na trama como articuladores do sistema controlado pelas Forças Armadas. Os cenários se organizam com a deposição do presidente João Goulart até as aulas de tortura conduzidas por agentes vindos dos Estados Unidos (v. 1). Geisel consolida o poder militar com a destruição das oposições armadas urbanas e da guerrilha do Araguaia, um processo mostrado com as vozes dos militares e dos militantes (v. 2). Há racionalidade e emoção, atos heróicos e comportamentos covardes na história de indivíduos, os sujeitos são sempre identificados, em decisões de vida ou morte. Nesta história não há lugar para a indiferença diante das vozes múltiplas que se cruzam e dos diferentes pontos de vista em análise.

Tortura como instituição do Estado

Com humor e afiado senso crítico o autor consegue demonstrar uma tese apoiada na volumosa e qualificada documentação: a tortura dos oposicionistas, institucionalizada como parte de uma política de Estado, foi um instrumento do sistema para a ditadura se organizar e construir sua hegemonia.

A narrativa fundamenta-se na citação criteriosa de um acervo de documentos que abrange desde papéis do arquivo pessoal do general Golbery a informações do sítio da internet sobre a história dos militantes da guerrilha do Araguaia. Mostra como agentes dos Estados Unidos treinaram policiais para a repressão política, ensinando técnicas de tortura nos interrogatórios com o uso de oposicionistas presos. Comprova o uso da tortura pelas autoridades antes e depois da presença em cena dos grupos ar­ma­dos da esquerda nas cidades e no campo, inspirados pelos projetos revolucionários anticapitalistas, principalmente pela Revolução Cubana.

Documentos que fundamentam a idéia da tortura como parte do sistema da ditadura podem ser consultados em arquivos abertos e alguns estão em obras publicadas. Como o levantamento organizado pelo projeto Tortura Nunca Mais da Arquidiocese de São Paulo. Ou depoimentos de autoridades militares, alguns deles avaliando o uso da tortura no regime (como o do presidente Geisel), que foram dados ao CPDOC/FGV – Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas.

Memórias e história da ditadura

A obra de Gaspari tem suscitado algumas leituras que mostram as dificuldades enfrentadas para transformar memórias em história. Temos problemas ainda em examinar com isenção as relações dos brasileiros com a ditadura.

O jornalista Mário Sérgio Conti (in: Notas sobre “As Ilusões Armadas”, nominimo. ibest.com.br, 14 de dezembro de 2002) aponta o caráter utilitário da tortura no regime militar: “Quem aceitou placidamente a tortura? (...) Há dignitários e colaboradores da ditadura que estão vivos e atuantes. Há gente que ficou rica com o regime militar, e portanto com a tortura...” Conti critica os que citam como uma realização da ditadura “o milagre brasileiro” e omitem as condições de prosperidade do capitalismo mundial naquela época.

O período de expansão da economia internacional, 1969-1973, foi também o auge da repressão política, da censura aos meios de comunicação de massa e da propaganda política do regime no Brasil, temas desenvolvidos em obras que escapam ao objetivo do estudo de Gaspari.

O filósofo Leandro Konder (in: “Ditadura envergonhada e sem vergonha”, Jornal do Brasil, 18 de janeiro de 2002, pp. B1 e B8) atesta a consistência e a densidade teórica do texto de Gaspari sobre a tortura. E nele se apóia para destacar que a tortura “acarreta deformações na mentalidade que influem nos conflitos políticos”.

A resistência que enfrentamos, ainda hoje, em examinar o que passou talvez seja uma permanência das “deformações na mentalidade”. As posições antagônicas e excludentes entre “os anos de chumbo” e “o milagre brasileiro” limitam nosso olhar sobre a primeira metade dos anos setenta. Lembramos que setores da classe trabalhadora do ABC paulista pareciam satisfeitos na época porque havia empregos e podia-se comprar casa e carro. O que significa isso? Podemos dizer que eles apoiavam o regime militar? Mas, o que era o regime militar para eles?

O que temos certeza com a pesquisa de Gaspari, como ressaltou o historiador Daniel Aarão Reis Filho (in: “A longa noite da repressão”, “Mais!”, p.14, Folha de S.Paulo, 19 de janeiro de 2003), é sobre o caráter minoritário da oposição à ditadura na primeira metade dos anos setenta: “Poucos, muito poucos, levantaram-se contra ela. De um lado, as organizações da esquerda armada de ilusões, mais do que de armas com seus escassíssimos efetivos (...) De outro, os que resistiram sem recorrer a violência (...).”

História e prática política

Uma pesquisa histórica como a de Elio Gaspari contribui para uma re(visão) do período e dificulta o uso dos fatos passados como mitos que nos escravizam. No estudo da ditadura militar, um período da nossa história recente e com muitos personagens ainda vivos, corremos o risco maior de praticar o culto da memória seletiva dos fatos. Sempre guardamos uma versão do passado, mas freqüentemente praticamos a mitificação que nos protege de visões dolorosas e do reconhecimento da condição humana sujeita a erros.

A história mostra as nossas transformações ao longo do tempo; e nos aponta as dificuldades de assimilar essas transformações. O presente imperfeito de hoje permite-nos perceber como foi importante a oposição à ditadura, ainda que minoritária. Sua existência possibilitou aos brasileiros a construção de um bloco histórico identificado com os valores defendidos no processo da luta pela volta ao estado de direito. Os valores do ser humano genérico, conforme Agnes Heller (in: O Cotidiano e a História, 4ª ed., trad. Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, Rio, Paz e Terra), uma vez estabelecidos na história, jamais perecem: depois de um tempo de autoritarismo sombrio podem renascer, pois sempre haverá seres humanos que o preservaram. Valores como: democracia, direitos humanos, liberdade de expressão e organização política – que hibernaram com a vigência da ditadura – reviveram na reconstrução da vida política e partidária no país.

Alice Mitika Koshiyama é docente do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP)