Estante

A Economia Solidária no BrasilÉ difícil avaliar um livro que reúne contribuições tão diferenciadas quanto esta publicação sobre economia solidária. Sua temática é importante e atual e o grande valor do livro reside no panorama inédito, apresentado aos leitores, das muitas discussões conceituais, experiências e iniciativas que se estão acumulando no Brasil, de economia solidária e autogestão de empreendimentos. Sem ter a intenção de apresentar todas as experiências e reflexões em curso ele, no entanto, abre um painel que permite uma visão bastante boa do conjunto dos personagens e instituições envolvidos com a economia solidária. Aqui se encontram relatadas experiências diferentes, desde cooperativas rurais e de crédito, associações e cooperativas de pequenos produtores e artesãos, até empresas falidas, que foram transformadas em cooperativas por seus antigos empregados.

O maior mérito do livro, porém, consiste em não fugir às questões controvertidas ou às dificuldades que essas experiências de socialismo na gestão dos empreendimentos econômicos encontram. Os artigos não só apresentam os ganhos para os trabalhadores participantes das formas solidárias de geração de renda e trabalho, como expõem com honestidade os problemas que os trabalhadores cooperados enfrentam dentro e fora das cooperativas ou das empresas autogestionárias. E estes não são poucos.

A situação do trabalho e do trabalhador, com os efeitos da globalização, agravou-se muito. Uma grande parcela dos trabalhadores no Brasil viveu sempre fora do mercado formal de trabalho. As lutas dos sindicatos de trabalhadores se desenvolveram mais em torno do emprego assalariado e com garantias institucionais que na defesa de interesses difíceis de serem definidos, como, por exemplo, os dos milhões de migrantes que formam a massa de trabalhadores sem qualificação nas grandes cidades. Mas com a internacionalização do capital as condições de vida pioraram para todos. A maior vulnerabilidade dos trabalhadores, sindicalizados ou não, renovou ou acendeu o interesse por novas formas de organização de todos os seus segmentos.

As características mais marcantes da economia solidária e das experiências de autogestão são justamente aquelas que se têm voltado para essa população desde sempre abandonada pelo Estado, seja propiciando e incubando associações e cooperativas de artesãos, de prestação de serviços de limpeza, de jardinagem, confecções, alimentos e outras, sendo no desenvolvimento de sistemas de acesso ao crédito para pessoas sem capacidade de oferecer garantias para os empréstimos e fora, portanto, do sistema financeiro dos grandes financiadores, como os bancos.

A evidência mais clara do nível das necessidades desses trabalhadores se expressa nas quantias que constituem a maioria do volume dos empréstimos da Instituição Comunitária de Crédito Portosol, de Porto Alegre: 68% dos créditos concedidos estão na faixa de 1,5 mil reais. Mais interessante é verificar que estes estão "distribuídos conforme as seguintes proporções: 20% entre duzentos e quinhentos reais; 31% entre mais de quinhentos e mil reais; 17% entre mais de mil e 1,5 mil reais. Conclui-se, portanto, que pouco mais da metade dos créditos concedidos localizam-se na faixa entre duzentos e mil reais, sendo este o primeiro aspecto relevante em termos da principal finalidade social da Portosol, qual seja, fornecer crédito aos pequenos e microempreendedores." (p. 183). Essa instituição e mais o Sistema Cresol de Cooperativas de Crédito Rural comparecem, em uma das partes do livro – "Sistemas de Crédito Solidário" –, como exemplos de experiências fundamentais numa área que é crucial para a autogestão e a economia solidária dos grupos sem capital algum.

Na verdade, os que trabalham com grupos populares para a geração de trabalho e renda sabem que um dos pontos fundamentais para o êxito é o acesso ao crédito para as cooperativas e empreendimentos. Como estes são compostos de indivíduos há muito desempregados, pouco qualificados, analfabetos ou precariamente alfabetizados, não podem oferecer nenhuma garantia a não ser aquela que sempre oferecem: o seu trabalho. Mas este não obtém empréstimos porque, sendo indissociável do trabalhador livre, não é mais um bem do qual as instituições financeiras possam se apropriar e dispor de outro modo caso o empréstimo não seja pago.

É bom lembrar que um número razoável de empreendimentos solidários parte da associação de pessoas que desejam obter algum meio de vida (ou renda) por intermédio do trabalho. São vizinhos, conhecidos, moradores de uma mesma região ou freqüentadores de uma paróquia, que se juntam a partir de algo que acreditam possuir em comum ou de alguma atividade que já realizem em comum. São denominados, genericamente, de empreendimentos comunitários, sem que se atribua a esse conceito nenhum caráter reificante.

Outra parte do livro – "Redes de Projetos Comunitários" – traz três relatos de experiências frutíferas e em andamento, tratando de um dos maiores problemas dos pequenos empreendimentos como as cooperativas: sua grande fragilidade para subsistir num sistema altamente competitivo. A fim de fugir ao isolamento e enfrentar essa fragilidade criaram-se, tanto no Rio quanto em São Paulo e Porto Alegre, redes de ajuda mútua entre vários empreendimentos de economia solidária. Os artigos que tratam dessas redes nasceram de pesquisa dos autores e são ricos em dados e reflexões, apontando, com clareza, as dificuldades e incertezas que acompanham as experiências, mas dando, também, destaque aos ganhos individuais e coletivos que elas propiciam: "A atividade em empreendimentos comunitários parece estar gerando nas pessoas envolvidas auto-estima e vontade de autonomia crescente. Nos fóruns de economia solidária, por meio dos debates promovidos, os atores envolvidos contribuem para a politização da questão do desemprego e da pobreza" (p. 261).

A colocação em termos políticos das questões sociais da pobreza e do desemprego é uma das mais importantes contribuições associada à idéia da economia solidária, tratada em outro conjunto de textos que corresponde às discussões mais centrais do livro: "Agências de Fomento à Economia Solidária". Entende-se, aí, o fomento como a atuação deliberada de grupos dentro de universidades (as incubadoras tecnológicas de cooperativas populares) e central sindical (a criação, na CUT, da Agência de Desenvolvimento Solidário), voltados para o incentivo à criação de cooperativas populares, por meio de grupos organizados ou que venham a se organizar, para dar-lhes o apoio técnico necessário à formação dos seus membros e regularização do empreendimento, bem como abrigo para os seus momentos iniciais.

O que importa ressaltar é o caráter profundamente democrático que as agências imprimem à sua atuação, que vai se refletir nas cooperativas e grupos incubados, nos quais se desenvolvem atitudes de autonomia e solidariedade, bases necessárias para a autogestão democrática dos empreendimentos.

O caráter fragmentado do livro, e a data recente da maior parte das experiências relatadas, não nos impede de obter uma impressão muito forte do conjunto. A própria fragmentação possui um sentido que é muito caro aos atores: a unidade, quando é possível, se dá mais na direção da autonomia das experiências do que na realização de um modelo único de organização do trabalho e das relações de trabalho. Democracia, autonomia e autogestão no trabalho e na geração de renda correspondem, basicamente, ao conteúdo comum de todas elas. Contudo, cada experiência é uma criação única, porque não se caracteriza pela aplicação de algumas regras emanadas das necessidades do capital, mas de princípios comuns, baseados nas exigências nascidas das necessidades dos cooperados.

Essa mudança de foco é crucial. Somente ela permite a reunião de trajetórias, na aparência tão díspares, sob o título comum da economia solidária. O caráter autogestionário e a participação tendem a criar nos empreendimentos, cooperativas ou associações, um espaço aberto e democrático de discussão e debate, que foge muito às experiências ordinárias da cidadania, que se limitam, de modo geral, ao voto nas eleições. A democracia participativa vivida nas cooperativas tem como centro os interesses coletivos que estão muito próximos dos interesses dos cooperados. Estar entre iguais, falar e ser ouvido, votar e ser votado, escolher os caminhos a serem seguidos e sentir-se responsável pelo futuro seu e dos outros são experiências que transformam o trabalhador.

Um dos fatores responsáveis pelo sucesso de cooperativas nascidas em condições econômicas as mais adversas é esse novo modo de trabalhar com e não contra os outros. Aliás, o inverso, ou seja, a perda desse espaço público e igualitário e o enfraquecimento conseqüente da democracia interna, é um dos elementos responsáveis pelo fracasso de experiências que chegaram a ser vitoriosas.

"Um instantâneo da economia solidária no Brasil", título apropriado para introduzir um tema em constante mudança. O livro fixou um momento, com suas riquezas, problemas, perplexidades e desafios. Mas é próprio deste movimento encontrar em si mesmo sua força generativa e regenerativa para novos momentos e novos instantâneos.

Sylvia Leser de Mello é professora de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.