Estante

A ética protestanteA recente publicação do clássico A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, do pensador e sociólogo alemão Max Weber, pela Companhia das Letras, merece todo o nosso aplauso. Trata-se de uma tradução direta do original alemão - o que não é, nem de longe, algo óbvio -, além de ser bem-cuidada e bem-feita, sob a coordenação segura do professor Antônio Flávio Pierucci, da USP. O principal mérito desta versão brasileira é o fato de haver conseguido combinar a fidelidade ao texto original com uma leitura escorreita e livre, adaptando o texto literal à musicalidade do português brasileiro. Trata-se, certamente, de uma contribuição de grande alcance para toda a cultura acadêmica brasileira, se considerarmos a importância da obra. A Ética Protestante, como este trabalho é conhecido, foi considerada recentemente, por pesquisa abrangente realizada pela Folha de S.Paulo, o livro mais importante das ciências humanas do século 20 por especialistas das mais variadas áreas das ciências humanas.

Tamanho prestígio possui inúmeras boas razões. Primeiro, é um livro bem escrito, com uma tese histórica e teórica clara acerca do aspecto central para todas as ciências humanas modernas e em especial a sociologia: precisar o que existe de singular e de novo na modernidade ocidental. A sociologia nasce como disciplina precisamente para dar conta dessa questão central, a qual tem a ver, nada mais, nada menos, com a auto-interpretação e com a auto-avaliação do Ocidente em todas as dimensões da vida.

Na Ética Protestante, cuja primeira edição foi feita ainda no limiar da passagem da juventude à maturidade do autor, Max Weber adianta os temas centrais que iriam presidir todo o seu esquema de pensamento, talvez o pensamento mais vigoroso e influente do século 20. Weber deixa claro na Ética que a revolução que transforma o Ocidente de cima a baixo foi uma revolução "moral". O que se constitui com o protestantismo ascético é toda uma nova maneira de perceber o homem e o mundo social e natural. Cria-se um novo "racionalismo" portanto, para usarmos a linguagem weberiana. Racionalismo para Weber significa precisamente uma nova forma de agir e de compreender o mundo em todas as suas dimensões: o mundo da natureza interna, da natureza externa e da vida social que compartilhamos com os outros. Nessas três dimensões, que reproduzem não por acaso a arquitetônica kantiana da razão, temos com a revolução protestante o parto de um novo tempo.

Este livro de extraordinária influência no mundo todo também marcou profundamente a forma como nós, brasileiros, nos vemos e nos interpretamos. O ponto de partida culturalista - ou seja, a diferença entre sociedades não se deve a heranças raciais, mas a heranças culturais compartilhadas - deste livro de Max Weber vai ser o divisor de águas entre os paradigmas racialistas - dominantes entre nós até a década de 1920 - e o nascente paradigma cultural que se implanta a partir da década de 30. Nesse contexto, a influência da Ética Protestante é avassaladora. Sérgio Buarque de Holanda é talvez o primeiro a articular a especificidade brasileira a partir da obra weberiana, cujo centro nodal é a tese da especificidade do racionalismo ocidental contido na Ética Protestante. O "homem cordial"; como tipo social e cultural do brasileiro, é pensado por oposição ao pioneiro protestante ascético norte-americano. A partir daí essa linha interpretativa tem uma história de glória entre nós, na medida em que interpreta nossa especificidade como construída por uma herança pré-moderna - em oposição à modernidade tout court do protestante ascético - marcada por personalismo nas relações interpessoais e por patrimonialismo nas relações institucionais. Raymundo Faoro, Simon Schwartzman, Roberto Da Matta, e em parte Fernando Henrique Cardoso e até Florestan Fernandes, foram influenciados por esse diagnóstico dominante acerca de nossas mazelas.

O problema com esse diagnóstico, ainda hoje dominante entre nós, é que se parte de uma "ideologia popular" do brasileiro acerca de si mesmo, ou seja, de que somos adeptos do "jeitinho"; das relações emocionais, dos vínculos personalistas e de privilégio, da corrupção enfim, de forma acrítica e indiferenciada. Perde-se de perspectiva com isso toda a dimensão dinâmica e moderna da sociedade brasileira que protagonizou um dos mais impressionantes esforços dirigidos e conscientes de modernização de todo o século 20, conseguindo as maiores taxas comparativas de crescimento econômico em todo o globo. Uma explicação das nossas mazelas, que não são poucas, tem de se articular com o tema da complexidade de toda sociedade moderna, mesmo das periféricas como a nossa. Para a compreensão de uma sociedade complexa há que se libertar da compreensão de que o Brasil pode ser percebido segundo o prisma de uma fazendinha do século 19, baseada em relações pessoais verticais de proteção e obediência.

Uma concepção alternativa, para uma compreensão mais adequada e mais convincente de problemas sociais como marginalização e subcidadania entre nós, exige, a meu ver, uma virada radical na maneira de perceber a singularidade da modernização periférica. Max Weber, no final de seu estudo acerca da religião da Índia, avança uma intuição, a qual me parece fundamental para o tema. Ao analisar o caso do desenvolvimento do capitalismo no Japão, por comparação com o caso hindu, Weber salienta que a expansão do capitalismo ou do racionalismo ocidental, como ele preferia, para a periferia dá-se tanto mais profundamente quanto mais o modelo assume a forma da exportação das instituições fundamentais do Ocidente, como mercado competitivo e Estado centralizado, sob a forma de "artefatos prontos". Essa concepção é antagônica à versão ainda dominante entre nós do personalismo e do patrimonialismo que partem do pressuposto de uma modernização endógena, de "dentro para fora'; com São Paulo desempenhando o papel de uma espécie de "nova Inglaterra tropical" que se contraporia ao resto do país autoritário e corrupto.

Se estou correto, então a questão passa a ser identificar que concepção de mundo é esta que é importada a partir da exportação das instituições fundamentais do mundo moderno para a periferia. Isso significa que toda uma cultura e concepção de mundo contingente estão associadas à lógica institucional do capitalismo moderno. Perceber esse aspecto central é superar o tipo de essencialismo culturalista, também ainda dominante entre nós, que desvincula cultura da eficácia institucional, que é a única instância que pode explicar de que modo cultura e valores podem influenciar o comportamento humano. Perceber a relação entre cultura e eficácia institucional é também não se deixar cegar por uma certa sociologia, que assume como pressuposto indiscutido o discurso que essas instituições fazem de si mesmas, ou seja, como se elas fossem configurações comandadas por critérios neutros de eficiência técnica a partir de critérios igualitários e meritocráticos.

Desse modo, passa a ser fundamental recapitular a noção ocidental hegemônica de virtude para a quase totalidade dos pensadores modernos e contemporâneos: controle da razão sobre emoções e pulsões irracionais, interiorização progressiva de todas as fontes de moralidade e significado e entronização concomitante das virtudes do autocontrole, auto-responsabilidade, vontade livre e descontextualizada e liberdade concebida como auto-remodelação em relação a fins heterônomos. É precisamente essa noção historicamente construída, altamente improvável e culturalmente contingente de personalidade e de condução da vida, que se constitui na Europa entre os séculos 17 e 18, que passa a ser o núcleo duro da hierarquia valorativa incrustada deforma opaca e intransparente no funcionamento dessas instituições fundamentais. Em outras palavras e weberianamente, o protestantismo ascético, que constrói essa noção contingente e única de agência humana, passa a ter agora como suporte secular a lógica impessoal de mercado e Estado que reproduz, através de estímulos empíricos como dinheiro e coerção legal, o mesmo tipo de indivíduo, baseado na autodisciplina e no autocontrole, que antes a fé produzia.

As gerações que nascem já sob a égide das práticas disciplinadoras consolidadas institucionalmente, esse modelo contingente de hierarquizar os seres humanos assume a forma naturalizada de uma realidade auto-evidente, que dispensa justificação. Responder aos imperativos empíricos de Estado e mercado passa a ser tão óbvio quanto respirar ou andar. Mas, se quisermos ir além das aparências, devemos suspeitar do discurso legitimador que essas instituições fazem sobre si mesmas, ou seja, como se elas fossem estruturas objetivas e neutras que expressam princípios meritocráticos e igualitários. Afinal, será a noção de disciplina e controle do corpo e de suas emoções e necessidades que passará a diferenciar imperceptivelmente classes sociais, gêneros, etnias etc. Não só a luta entre classes e frações de classe vai ser decidida por essa oposição entre a alma ou razão - como locus das virtudes das classes dominantes - e o corpo - como locus das virtudes dominadas e ambíguas das classes inferiores -,exemplarmente perceptível na oposição entre o trabalho intelectual e o manual, mas também todas as outras hierarquias que pressupõem superioridade e inferioridade ou a noção de melhor ou pior, como a oposição homem/mulher e branco e negro, na medida em que tanto a mulher como o negro são percebidos como repositórios das virtudes ambíguas da corporalidade, da afetividade e da sensualidade, por oposição às virtudes não ambíguas do intelecto e da moralidade. É o mecanismo de opacidade e de naturalização da inferioridade que faz parecer à própria vítima do preconceito, seja ele de classe, gênero ou cor, que seu fracasso é pessoal, merecido e justificável.

Isso significa que a cidadania e o reconhecimento social têm a ver com efetiva homogeneização da economia emocional que caracteriza o indivíduo produtivo no capitalismo e que esse é um processo coletivo de aprendizado cultural e político. Essa "ideologia do desempenho" é a base do consenso pré-reflexivo, continuamente reproduzido institucional mente, que de modo objetivo determina, independentemente de nossa vontade individual, o valor diferencial dos seres humanos, que nós apenas atualizamos na vida cotidiana. O capitalismo, tanto no centro quanto na periferia, secreta uma ideologia espontânea, que é tanto mais eficiente por ser opaca e invisível na dimensão cotidiana que naturaliza a desigualdade que se traveste de meritocrática. Sua objetividade e sua ubiqüidade forçam suas próprias vítimas a se perceber como a causa do próprio fracasso, vinculando não-reconhecimento social e baixa auto-estima.

Essa lição weberiana, que permite perceber as causas profundas de problemas como subcidadania, marginalização social e desigualdade de outro modo, um modo alternativo ao paradigma personalista e patrimonialista ainda dominante no debate teórico e político nacional, ainda não foi adequadamente compreendida entre nós, seja pela reflexão metódica, seja pela prática política. Esta última, que depende do estoque de idéias de intelectuais para soluções criativas de problemas práticos, não por acaso se vê condenada ao assistencialismo e ao populismo, ainda que de esquerda. A pobreza do debate teórico, que fragmenta as causas da desigualdade em temas apartados como "violência", "segurança pública", "marginalidade" etc. e impede uma visão global e totalizadora da questão, condiciona a pobreza das soluções políticas para seu efetivo combate de longo prazo.

Jessé de Souza é sociólogo, professor da Iuperj