Estante

A História Real nos promete a "trama de uma sucessão", mas nos oferece uma trama sem aranha: o poder real, os grandes grupos econômicos e a mídia escapam lisos. Josias e Dimenstein referem-se ao "poderoso esquema, montado no Estado, poder econômico, adesão de meios de comunicação e, principalmente, a administração eleitoral de uma moeda" que sustentaram a campanha de FHC. Mas o poderoso esquema não possui sujeitos. Ao falar do empresariado, o livro beira a ingenuidade: "os inseguros empresários aproveitavam as últimas semanas (antes do Real) para subir ao máximo seus preços". Noutra passagem, os empresários aparecem discutindo como "cooptar o novo governo e não como eleger seu candidato. A estratégia seria ganhar a confiança dos moderados do PT e, ao mesmo tempo, reforçar uma bancada à sua direita, na Câmara, para servir de contrapeso". Não é preciso ser adepto de nenhuma teoria conspirativa para saber que os empresários articularam freneticamente, principalmente, para derrotar Lula. O livro beira o assunto quando fala dos aniversários na casa de Roberto Marinho , mas só.

Ao não falar do poder real, A História... reforça a crença de FHC, "na presença de uma mão invisível' ajudando-o a conquistar, sem qualquer esforço, inesperados espaços". Por exemplo: "favorecido pelas articulações do acaso, FHC passava a dispor de três dos mais conceituados cérebros econômicos do país: Bacha, Lara Resende e Pérsio Arida", a trinca do Cruzado. O livro não investiga os vínculos entre estes "conceituados cérebros econômicos" e o grande capital. Pessoas como Gustavo Franco, que "cuidou para que a redação do artigo 34 da Medida Provisória que criava a URV tivesse uma redação floreada na forma e vazia no conteúdo, de tal modo que o controle de preços jamais pudesse ser exercido". Pessoas como Clóvis Castro, "cujo salário como vice da Villares era algo em torno de 15 mil dólares mensais, sem contar benefícios indiretos; como segundo homem do Ministério da Fazenda, receberia 1.200 dólares". Naturalmente, tudo por altruísmo.

A História está tão distante do real que não se fala dos contribuintes da "campanha mais profissional de que se tem notícia na história do Brasil, com um orçamento previsto em 65 milhões de dólares" - empresas como a Golden Cross, o Pão de Açúcar e outros beneficiários da inflação. Em compensação, os autores gastaram cinco telefonemas para os Estados Unidos, a fim de descobrir "qual a marca do vinho francês usado para o brinde, em Nova York, ao então chanceler Fernando Henrique Cardoso. Um brinde interrompido por um telefonema de Itamar Franco, ponto de partida de sua candidatura. Tivemos de aborrecer o embaixador do Brasil na ONU, Ronaldo Sardenberg, que, na condição de integrante do Conselho de Segurança da ONU, estava absorto naqueles instantes na crise do Haiti." Coisas desse tipo "dão cor ao livro". Outras menos importantes são omitidas, como a presença de James Carville, assessor da Casa Branca, na equipe de FHC. Ou o fato, relatado sem a menor indignação, do Plano Real ter sido previamente submetido ao FMI.

Assuntos como a sociedade entre FHC e Sérgio Mota, ou o filho do presidenciável tucano com sua amante, são tratados como "boatos", cabendo a palavra final a Fernando Henrique: "tudo não passa de futrica". A diferença de tratamento que a imprensa concedeu a estes casos e denúncias semelhantes envolvendo o PT não merece a menor reflexão: "era como se o candidato do Real estivesse protegido por um vigoroso escudo, um invisível campo magnético que o envolvesse. A barreira protetora de Fernando Henrique não se limitava a protegê-lo: refletia os ataques, revertendo-os contra o agressor". O que era essa "barreira protetora", senão um poderosíssimo esquema de mídia? Tão poderoso que A história real só dedica aos vínculos entre Maciel e PC Farias suas breves duas últimas páginas. Aliás, omite-se a presença de tucanos de segundo escalão no governo Collor. (Para os que acham que a mídia não coordenou seus atos com as necessidades da campanha de FHC, sugerimos comparar as recomendações de marketing da campanha tucana - páginas 200 e 202 de A História Real - e os atos concretos da imprensa).

O tom muda quando o assunto é o PT, tratado por Dimenstein e Josias com a superficialidade, a parcialidade e o cheirinho de gorila já conhecidos em seus artigos na Folha: "o PT, partido que dá guarida a sindicalistas, grevistas e seitas esquerdistas de diferentes matizes". Concede-se enorme espaço a distorcer fatos menores - como a decisão de cancelar um comício devido à morte de Ayrton Senna -, enquanto o debate acerca da revisão constitucional, a substituição de Bisol, a escolha de Mercadante, recebem um tratamento tão profundo quanto as colunas de Joyce Pascowitch. O aborto e a dívida externa merecem uma menção - "foi uma negociação complexa"- e quatro ralos parágrafos, concluídos assim: "no Palácio do Planalto, todos se acertariam na repartição dos cargos". O conflito entre o cineasta Sílvio Tendler e a equipe de TV da Frente Brasil Popular recebe grande espaço, todo dedicado a difundir a versão de Tendler. Não há contraditório, nem aqui nem em nenhuma outra passagem: a versão sobre o que se passa no PT é mo-mo. Monolítica e moderada.

Entre tantas futricas, A História Real traz algumas informações interessantes: os contatos entre Lula e a Globo; as conversas de Mercadante com FHC; as "negociações secretas" entre o PT e o PSDB. Resta saber o quanto há de verdade nisso, ou na informação de que "a tática de amaciamento de personagens como Mário Amato e outros figurões era uma das pontas de um plano completo, detalhado num documento reservado do PT, intitulado Projeto PT 2000. O texto de oito páginas foi elaborado pelo assessor Ricardo Kotscho, em 1992, estudado pela alta cúpula do partido e aprovado por Lula". Não se tinha notícia disto no PT, cujas reuniões de cúpula, ultra-secretas, eram detalhadamente descritas pela imprensa. Aliás, um partido cujo garganta profunda é tão eficiente dispensa gastos com assessoria de imprensa.

Falando nisso, a Folha informou que Ricardo Kotscho, assessor de imprensa do presidenciável petista, acertou um contrato com a Cia. Editora das Letras, e fará um livro sobre a campanha Lula. Certamente, será melhor que A História Real. Mas a literatura acerca da campanha de 1994 nunca poderá ser muito edificante.

A história real não permite.

Valter Pomar é diretor de T&D.