Estante

A ideia e o figuradoReunião de escritos de Gilda de Mello e Souza (1919-2005), este volume colige artigos esparsos por diferentes periódicos, prefácios, apresentações de mostras, textos de catálogos, e mais um inédito. Merece aplauso o trabalho de preparação feito por Augusto Massi, vasculhando arquivos e resgatando preciosidades.

A autora não destoa da reserva e da discrição características do grupo da revista Clima, a que pertencia; além disso, muito do que escreveu ficou perdido, ou resguardado, em publicações esquecidas. No presente caso, confirmam o à-vontade com que se movia por diferentes ramos das artes, indo da pintura à literatura, e desta ao cinema, com incursões pela fotografia e pela dança, sempre apanhando o leitor desprevenido graças à perspicácia com que apreende ângulos inusitados. Em vez de uma descrição minuciosa, que acompanhe o livro passo a passo, optamos por uma visão geral que saliente alguns pontos nucleares.

Uma primeira parte encerra cinco trabalhos sobre um autor de sua especialidade, Mário de Andrade, em torno de quem foi e voltou ao longo de sua produção, em cursos, conferências e escritos. Aqui, concentra-se inicialmente na poesia, em ensaio que enfrenta os signos pessoais do poeta, usualmente quase indecifráveis de tão herméticos. É assim que, na exegese do poema “Brasão”, obtém a identificação de símbolos heráldicos como o boi e a preguiça. Da poesia, avança para elucidações a respeito da verve de colecionador de Mário, que ultrapassava o mero hobby. A anatomia dessa vertente vai esclarecer aspectos menos visíveis da obra, ao perquirir o “complexo de Narciso”, na liminar do catálogo da exposição das telas e esculturas de propriedade do escritor, nos anos 80. A esse propósito, veja-se a recente mostra de objetos e de arte popular que completam a coleção, realizada em 2005 pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP, sob os cuidados de Marta Rossetti Batista, que assina o novo e belíssimo catálogo. Do colecionador estende-se à verdadeira missão a que o poeta se dedicou a vida inteira, musicólogo que era, enquanto professor no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Os achados multiplicam-se, especialmente na leitura contrastiva de duas fotos com flagrantes de Mário de Andrade, uma entre as fileiras de colegas do conservatório, munidos de bengalas e chapéus, outra em meio à descontração da comparsaria de 22.

O paralelo traçado com Gilberto Freyre num dos textos traz curiosas aproximações e disjunções. Tomando impulso em críticas que ambos escreveram nos anos 20 sobre a pintura de Cícero Dias, observa que essa pintura extraiu deles apreciações similares, e com base nas mesmas razões, embora os dois chefiassem à época movimentos que se opunham em seus princípios estéticos e ideológicos. Desenvolvendo a linha central de suas obras posteriores, a autora detecta uma clivagem jamais resolvida, interna a cada uma, causada pela consciência da mestiçagem e do hibridismo cultural. O pernambucano, defensor da tradição conservada numa sociedade rural, os vê com complacência, enquanto o paulista urbano vanguardeiro os toma como fonte de instabilidade e de injustiça. É para alimentar esse cotejo que, mais uma vez surpreendendo o leitor, a autora vai esmiuçar O Turista Aprendiz, notas da viagem que retira Mário de sua cidade e o transporta para a aventura maior de conhecer o Brasil, em jornadas nordestinas e amazônicas. O ensaio chama a atenção para o novo patamar que a teorização desses dois, enraizada na terra, significou para a fase de transição entre a explosão das vanguardas e o advento dos especialistas universitários.

Outros autores e assuntos ocupam a segunda parte, em cardápio variado. Um ensaio mais longo trata dos nexos entre a vestimenta e o corpo que recobre, tais como os vêem três ficcionistas, Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar e Machado de Assis. Tais nexos revelam não só atitudes diferentes quanto às funções sociais das roupas, por parte de cada um, como também noções cambiantes do que seja o erotismo.

Nessa parte, um ensaio mais detido sobre o pintor Lasar Segall mobiliza o domínio da obra de todos os modernistas, sejam escritores, sejam artistas plásticos. Mas vai mais longe, desaguando numa meditação sobre o que teria sido a sociabilidade reinante e suas implicações políticas. Compara o salão de dois mecenas, a Vila Kyrial de Freitas Valle, de maior pompa e circunstância, e o Pavilhão Modernista de D. Olívia Guedes Penteado, projetado por Segall, mais futurista, porém segregado no jardim da residência. E trata sobretudo dos famosos bailes de carnaval promovidos pela Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM). Embora aparentemente não passassem de atividades frívolas, as festas, cujo cenógrafo era Segall, assessorado por Mário de Andrade, comportavam um roteiro. Dramatizando uma pantomima extremamente irreverente, o roteiro, ao incorporar o humor popular da praça pública, alfinetava os poderes constituídos e os cerimoniais da alta burguesia. A fase era de radicalização política, eco da crise econômica de 1929, e os festeiros acabariam granjeando a pecha de subversivos. Logo atrairiam ataques vindos da direita, que se fortalecia; e os bailes terminariam por extinguir-se. O ensaio lembra o papel decisivo da sociabilidade desses artistas ao pôr em dia os hábitos de vida de uma cidade ainda acanhada, apurando o gosto e introduzindo costumes menos provincianos. E, em ilação do tipo de insight em que a autora é fértil – seu argumento efetua um salto que de repente ilumina em rastilho coisas distantes uma da outra –, o princípio estrutural da pantomima, transcendendo a fugacidade das efemérides, estará incorporado bem mais tarde quando Mário de Andrade criar a ópera-balé O Café (1943), sátira francamente política aos ricos cafeicultores paulistas.

Pede destaque o texto sobre a filmografia de Antonioni, diretor da preferência da autora. Conhecedora de toda a obra, que meticulosamente analisa filme por filme, sustenta que o conjunto gira em torno de um único tema, que é a busca, associada a uma morte. Esse ponto de partida alicerça a construção das personagens e as linhas da ação. Assim extrai o esquema central que se reitera, embora para o leigo nem sempre seja óbvio. Outra constante reside nos títulos dos filmes, que vão deslizando do mais afetivo ao mais abstrato, enquanto as profissões dos protagonistas evoluem do mais estético ao mais técnico. Já os conflitos amorosos mal encobrem o desgosto profissional e o vazio das existências, expresso em caminhadas sem rumo seguidas pela câmera e silêncios que se arrastam. Entre os gigantes da tela italiana com que ombreia, seja Visconti com seu apego à História, seja Fellini ancorado na infância, Antonioni surge como menos passadista e mais instigado pela técnica. Ocupa várias páginas o estudo de Blow-Up, filme privilegiado pelo que diz do mundo da mídia e da técnica, abordadas sem disfarces através da fotografia, ofício do protagonista que, progredindo na modernidade, já fora, em filmes anteriores, arquiteto e escritor.

Outra surpresa é a que o livro nos reserva como fecho, em estudo inédito do gestual de Fred Astaire. Para quem sentir falta, as piruetas do artista que o tempo tornou clássico podem ser conferidas nos festivais de homenagem ou nos filmes em perpétua reprise nos canais a cabo. O estudo sobre aquele que foi talvez o maior dançarino de seu século enfatiza a modernidade da roupa que selecionou como marca registrada. Em negação dos figurinos nostálgicos ou fabulosos tanto do balé clássico quanto do musical da Broadway e de Hollywood, o preto-e-branco da casaca com cartola, traje bem cubista e despojado, vai reportar-se ao dândi baudelairiano flanando pelos bulevares. Parco na camuflagem, Fred Astaire tampouco chama a atenção para o corpo, que não aspira a ser mais que o suporte do gesto, mais exatamente da beleza do gesto, “pura, livre, autônoma e descarnada”. A intimidade ao lidar com os apetrechos banais do cotidiano – bengala, cabide, cadeira, vassoura, instrumentos de música – tanto os incorpora à dança quanto os transfigura em parceiros. Sua coreografia delineia o sonho da felicidade num universo paralelo, regido pela consonância, onde não vigoram destruição ou tragédia. Nesse meio ambiente aconchegante, nem alheio, nem ameaçador, o mundo metamorfoseia-se no casulo do dançarino de salão ou “de câmera”, avesso a qualquer monumentalidade. Vastos conhecimentos de artes visuais, tanto quanto o convívio com autores como Beckett, Baudelaire e Proust, balizam a busca de parâmetros para avaliar Fred Astaire.

Com essa nota alta, após o caleidoscópio de tantas artes e perícias, encerra-se harmoniosamente o percurso do livro.

Walnice Nogueira Galvão é crítica literária e integra o Conselho de Redação da revista Teoria e Debate