Estante

capa A ilusão dos inocentes"As revoluções proletárias se criticam continuamente a si próprias, interrompem continuamente seu curso, voltam ao que parecia resolvido para recomeçá-lo outra vez, escarnecem com impiedosa consciência as deficiências, fraquezas e misérias de seus primeiros esforços, parecem derrubar seu adversário apenas para que este possa retirar da terra novas forças e erguer-se novamente, agigantado (...)"

Karl Marx

Esta passagem do 18 Brumário revela bem a posição de Marx diante dos esforços revolucionários do proletariado. Longe de mistificá-los, coloca-se na mesma perspectiva que a própria classe diante dos seus feitos e impiedosamente rasga a experiência prática com as finas lâminas do anatomista teórico. Vai às entranhas dos fenômenos e confirma sua velha afirmativa de que a História só surpreende aos que de História nada entendem.

Nos turbulentos dias de nosso final de século, parte da humanidade ainda se assusta com trovões. Ruem sistemas, despencam ilusões, entoam-se cantos prematuros de vitória e apressam-se, novamente, para enterrar o futuro socialista e o marxismo numa velha cova há muito aberta. Enquanto isto, hábeis mãos manuseiam velhos instrumentos, separam nuvens, superam aparências, recolhem cuidadosamente o germe de vitória entre os escombros das derrotas e ousam traçar novos rumos.

Entre estes esforços está a trilogia de Wladimir Pomar, iniciada com Rasgando a Cortina e A Miragem do Mercado, e que agora se completa com o terceiro volume chamado, significativamente, A Ilusão dos Inocentes. Em seu estilo jornalístico, que se iniciou com impressões de uma viagem de três meses, realizada em 1990, pelos países do Leste Europeu, Pomar nos leva a uma viagem teórica muito além das imprecisas aparências dos acontecimentos. Munido de uma sólida compreensão do método de análise, coloca-nos profundas questões sobre o momento da luta de classes e as perspectivas do socialismo.

Neste último livro - na verdade um balanço daquilo que descreve nos dois primeiros -, o autor levará à risca o preceito de que a crítica deve comparar um fato, não com uma idéia, mas com outro fato dando-nos uma aula de materialismo. Assim, são julgadas as ilusões daqueles que anunciavam o melhor dos mundos que emergiria da ruína dos regimes ligados ao socialismo soviético, e também daqueles que imaginavam a irrupção de revoluções políticas de linha proletária. Buscando gradações, ou como afirma, "possibilidade de desenvolvimentos intermediários", Pomar faz uma minuciosa anatomia do período que se segue à queda daqueles regimes e das ilusões difundidas a respeito de uma nova ordem mundial capitalista, na qual prevaleceria a paz, a prosperidade e a democracia.

Para tanto, lança mão de uma saborosa analogia, que empresta da sarcástica ironia de Voltaire. Retoma um personagem deste filósofo do século XVIII, o "terno" e "crêdulo" Pangloss, para o qual tudo sempre estava bem e no melhor dos mundos. Assim, o final do século XX se vê povoado de Panglosses de diversos matizes, novos e velhos liberais, socialistas arrependidos, democratas convictos de alguma convicção e outros a recitar aos novos tempos que se anunciam.

Em vez de se emaranhar nas diversas formulações ideológicas, o autor limita-se a confrontar os devaneios com os fatos. Desta forma, brinda-nos com afirmações bombásticas como as de Thurow, que imaginava ocorrer no Leste a possibilidade de "se começar o jogo do mercado honestamente". A meta seria, como afirma Asch, o anseio de, todos a se tornarem cidadãos de classe média no padrão da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Aliás esta Nação, nas palavras eufóricas de George Bush, seria a sociedade mais igualitária do planeta.

<--break->O autor tece os fios da realidade que parece confirmar as esperanças de Pangloss: a globalização da economia, a massificação das comunicações, o novo patamar de produtividade do trabalho, associado à revolução científica e tecnológica, a substituição das tradicionais ditaduras por uma onda de democratizações, a resplandecência das economias dos Tigres Asiáticos, que Fukuyama toma como exemplo para mostrar que é possível a igualdade sob o capitalismo. Lembra-nos que a ideologia não é uma simples falsidade, revela-se como expressão de relações materiais, cuja inversão está determinada por algo muito mais complexo do que algum sentimento maquiavélico de deformar a realidade pelas idéias.

Após descrever a base material que parece dar razão à Pangloss, revela a boa e velha realidade, calcada em fatos objetivos que plantam a contraditoriedade nos jardins harmoniosos da ilusão. Os novos cidadãos vêem seu nível de vida desabar, aproximando-os mais do Quarto do que do Primeiro Mundo. Na Rússia, num exemplo citado no livro, com a liberação ocorrida em 1992, os preços elevaram-se em 16 vezes, enquanto os salários não aumentaram mais do que três ou quatro vezes. No conjunto do Leste, onde a moradia representava um gasto que variava de 1% a 5% da renda dos trabalhadores, as mudanças fizeram com que esta despesa passasse a representar 30% a 40% de uma renda que diminuía.

Nas sociedades do Leste, reinseridas no mercado, reintroduzidas no capitalismo, junto com as luminescentes lojas de artigos de consumo, dos gigantescos "M" amarelos da cadeia Mac Donald's, erguia-se, inseparavelmente, outro "M": o da sociedade produtora de mercadorias. Como afirma Marx, a sociedade capitalista apresenta-se, inicialmente, com uma enorme acumulação de mercadorias. No entanto, o que esta aparência esconde é que na sua essência esta acumulação tem por base a constante recriação de relações sociais de determinado tipo. De forma permanente são recriados os pólos básicos desta relação capitalista: proprietários privados dos meios de produção e massas de despossuídos que não têm nada além do que sua força de trabalho para vender.

Não é de se estranhar, portanto, que a volta do capitalismo tenha, tão rapidamente, criado um exército de desempregados. Pouco a pouco a miragem do mercado vai sendo substituída pela realidade das relações capitalistas de produção e de troca. Os indivíduos saídos de uma degeneração, vivida pela deformação do socialismo em estagnação burocrática, para outra, afogam-se por momentos, em mares revoltos de incompreensão e raros alcançam a lucidez de Arpad Goncz, velho militante húngaro, que se dizia feliz "por ter vivido o fim daquele desastre, mas queria morrer antes de ver o começo do próximo".

E o próximo desastre já é descrito por Pomar, não como quem blasfema diante do oponente vitorioso, acreditando que maldições podem turvar futuros promissores, mas como quem sabe que toda forma já traz em si, em germe, as contradições que provocarão sua superação. O vale de lágrimas de um mundo que não se viu integrado na prometida era de paz, prosperidade e democracia. Um mundo que se encolhe diante do horror de guerras, do renascimento dos fanatismos nacionais, do cinismo de um mercado liberto e de um capital sem restrições.

Minuciosamente os dados vão desenhando um cenário de degradação do meio ambiente, de crescimento do crime organizado, de crescente desemprego industrial, que na Inglaterra, por exemplo, levou a Ford a reduzir seus trabalhadores de 30 mil, em 1978, para 8 mil, em 1992. Vão se tornando nítidos os contornos da mancha pauperizante, com os 200 mil homeless da Inglaterra ou um milhão nos Estados Unidos, onde nos últimos dez anos o 1% mais rico viu seus rendimentos crescerem em 122%, enquanto a fatia dos 40% mais pobres da população viu seu ganho decrescerem 10% (isto na sociedade "mais igualitária do planeta").

<--break->E assim, longe de imaginar cenários catastróficos e levantes revolucionários, Pomar vai traçando o grau de contradição objetiva que povoa o novo ciclo de avanço das relações capitalistas e daí a possibilidade de renascimento do socialismo sob as mais variadas formas.

Mas, ainda estaríamos autorizados a falar em socialismo? Não teria a experiência recente tornado o "sonho dos justos" uma palavra mal dita, banida para todo o sempre junto com os termos revolução, comunismo e outros? Ainda fiel ao método, menos preocupado com os fenômenos, enquanto tem forma definida, e mais atento às transições, às passagens de um aspecto a outro no devir, o autor recupera, desde os primórdios, as lutas daqueles que elevaram suas cabeças acima da exploração e ousaram se rebelar contra a dominação. Refaz os elos desde o Egito, passa pela velha Grécia, e nela resgata algo valioso, lembrando-nos que a luta pela igualdade e liberdade conservou-se no culto do Deus Cronos. E é o Deus tempo que recolhe as sementes e as joga novamente ao vento que levanta Espártaco, e renasce nas lutas camponesas durante a Idade Média e chega até nós com os germes de luta operária desde os niveladores ingleses, até o socialismo utópico de Saint Simon, Fourier e Owen.

E chegamos até nossos dias com um grande desafio, nas palavras de Pomar, de viver a difícil situação de ter de romper com o presente sem perder os referenciais positivos do passado. Por isto, nega-se a solução mais simples de desconsiderar o caráter socialista daquelas formações sociais que vivem experiências revolucionárias neste século, preferindo centralizar a crítica sobre a forma como se deram estes processos de transição pós-capitalistas. Daí, discordar na essência da perspectiva do alemão Robert Kurz, com quem passa a manter uma produtiva interlocução crítica.

Preso à coerência de quem acredita que todo esforço teórico está indissoluvelmente ligado a uma reflexão sobre a ação futura, Pomar utiliza a segunda metade de seu livro para polemizar sobre os caminhos da transição socialista. Neste ponto aquilo que vinha sendo a grande virtude do livro, pode se tomar um entrave. A complexidade do tema choca-se com a forma pretendida, de direcionar o texto a companheiros e companheiras sem, necessariamente, uma formação acadêmica ou universitária. No entanto, antes de adiantarmos críticas ao autor, devemos refletir sobre o insuficiente trabalho de formação política que desenvolvemos enquanto movimento dos trabalhadores e que poderia ter gerado as bases necessárias para que as pessoas pudessem participar mais profundamente deste debate tão necessário.

Partindo de referências teóricas sólidas, o autor discute a transição como um desenvolvimento do processo de socialização econômica e política já iniciado nos próprios marcos do capitalismo. Neste contexto é que insere suas reflexões sobre o Estado e a economia na transição socialista.

Seu maior mérito é lançar a polêmica e desenhar os elementos básicos que estão envolvidos na questão. No entanto, exatamente por ser uma questão controversa, muitas serão as considerações de diferentes ordens a serem ser feitas. Acredito, por exemplo, que, na tentativa de se contrapor às afirmações de Kurz, que identificam a existência de mercado e a sobrevivência da lei do valor com a constatação do caráter capitalista daquelas formações sociais analisadas, Pomar enverga a vara no sentido oposto de maneira a mostrar a presença do mercado na transição socialista.

Se para Kurz a transição não passou de um processo de modernização capitalista pela via do estatismo, Pomar imagina que a economia de comando de tipo soviética não conseguiu administrar o ritmo do processo de socialização, tanto econômica quanto política, adiantando medidas contra o mercado e as formas de propriedade para as quais não haveria a base material necessária. Assim, partindo da premissa de que a política não pode andar na frente da economia, aponta o que chama de "socialização do mercado".

Neste processo sobreviveriam na transição a produção de mercadorias, o trabalho, os preços, os salários, a circulação de bens de consumo, o comércio externo e, até mesmo, diferentes formas de propriedade. Evidentemente, isto abre a possibilidade de retomada do capitalismo e, segundo o autor, este é o próprio risco da luta.

Sem dúvida que a questão extrapola os limites desta resenha. No entanto, me parece haver uma precária diferenciação do que seria mercado e mercado capitalista. Nem toda sociedade produtora de mercadorias é uma sociedade capitalista, concordando neste ponto com a crítica de Pomar a Kurz, assim como concordo que na passagem para o socialismo será inevitável a permanência de aspectos da antiga formação social. Todavia, torna-se necessária uma definição mais precisa daquilo que constitui a ruptura e daquilo que permanece sob o risco de se transitar de uma coisa para ela mesma.

Quando Pomar afirma a sobrevivência do mercado, incluindo a força de trabalho como mercadoria, a predominância da lei do valor, e colocando a superação deste quadro para a situação futura em que houver desaparecido a subordinação do indivíduo à escravizante divisão do trabalho, quando a produtividade do trabalho fizer jorrar em abundância os produtos, quando o trabalho deixar de ser, por fim, um mero meio de vida (citação, aliás, que é de Crítica ao Programa de Gotha e não do Manifesto Comunista, como deixa a entender o texto); acaba por enredar numa armadilha que pode o identificar com a posição de Kurz que procura combater. Kurz poderia afirmar, com certa razão, que uma sociedade em que prevalece não só as mercadorias, mas também o trabalho como mercadoria, razão base para a lei do valor sobreviver, é ainda uma sociedade capitalista.

Uma das chaves para refletir sobre este tema encontra-se no próprio Crítica ao Programa de Gotha, no qual Marx afirma que numa sociedade que acaba de sair dos flancos da sociedade capitalista, portanto no estágio que estamos chamando de transição, o trabalhador entregará um tanto de trabalho e receberá meios de consumo equivalente à quantidade de trabalho que cedeu. Assim, diz Marx, ainda imperaria o mesmo princípio que regula o intercâmbio de mercadorias. No entanto, acrescenta que variam tanto a forma quanto o conteúdo desta relação, uma vez que ninguém pode dar senão o seu trabalho, pois nada agora poderia passar a ser propriedade do indivíduo. As mercadorias continuam sendo trocadas segundo a equivalência, troca-se trabalho sob uma forma por trabalho em outra forma. Desta maneira, parece-nos claro, o ponto nítido de ruptura é o fato de que o trabalho deixa de ser uma mercadoria e são abolidas as relações em que a compra da força de trabalho é o meio determinante de gerar mais valor.

O mesmo raciocínio deve ser feito no âmbito da transição política sobre o grau de ruptura e continuidade das atuais formas e instituições políticas.

Avançamos muito numa polêmica que com certeza exige mais fôlego que o empreendimento atual. A culpa é do livro, por seu caráter instigante e polemizador, o que o torna uma leitura obrigatória para aqueles que querem participar dos debates atuais numa posição diferente dos que se contentam em praticar a política pelo exercício do voto, seja nas umas da democracia burguesa, seja no fantástico ritual dos crachás em época de encontros.

Em um de seus poemas, Brecht fala de um cortejo em que o Velho arrastava suas muletas e exalava seus odores de putrefação, mas se anunciava como o Novo e conclamava: "aí vem o Novo, tudo é Novo, saúdem o Novo, sejam Novos como nós". No entanto, olhares atentos percebiam que o Velho trazia preso o Novo e o apresentava como aquilo que era o mais antigo. Nem sempre é fácil vislumbrar o novo que vem envolto nas entranhas do velho que agoniza. O livro de Wladimir Pomar é um esforço nesta arte. Recolhemos esta contribuição como uma pedra que reforça nossas trincheiras e protege nossas cabeças das balas que zunem neste momento de defensiva, permitindo-nos pensar, recuperar forças, até um dia em que, vencendo esta derrota, ergamos-nos de trás das barricadas para vislumbrar novamente os olhos do nosso inimigo e dizer: "Agora se torna impossível qualquer retrocesso".

Mauro Iasi é membro da Executiva Municipal do PT de São Bernardo do Campo e do Coletivo da Secretaria Estadual de Formação Política do PT-SP.