Estante

livro A moralidade da democraciaEm A moralidade da democracia, melhor livro do ano segundo a ANPOCS 97, Leonardo Avritizer nos oferece duas realizações importantes. Por um lado, pode-se ler seu trabalho como uma introdução, a partir da sociologia política, à obra de Habermas. Por outro, trata-se de uma tentativa de pensar a democracia e o autoritarismo no Brasil de forma original.

Enquanto Habermas escreveu sua obra na Alemanha, no contexto de uma sociedade extremamente fechada, sobretudo após a derrota dos movimentos de 68 e as crescentes dificuldades enfrentadas pelos movimentos sociais, Avritzer concentra-se mais, especialmente nos últimos capítulos de seu livro, em questões que concernem à mudança social, que, infelizmente, vê-se também no Brasil crescentemente bloqueada. A transição para a democracia e os impasses daí resultantes estão no centro da reflexão de Avritzer. Ele busca superar os impasses e o elitismo das teorias da democracia do século XX (que se expressa hoje praticamente, em particular em nosso país, nos círculos de governo). Para isso, toma de Habermas uma distinção entre a complexificação da administração – que diz respeito ao sistema político, regido pelo poder e auto-regulado – e a participação dos cidadãos – que se realiza através da “ação comunicativa” que indivíduos e grupos praticam no “mundo da vida” e na esfera pública.

Avritzer nos convida a visitar alguns autores importantes para o desenvolvimento do pensamento de Habermas: Marx e Weber. Se a leitura de Marx é um tanto pobre, com Weber ele chega à importante idéia de que “reconhecimento do outro enquanto um igual, isto é, um ser potencialmente portador de direitos generalizáveis” colocou-se como a base moral da democracia (p. 81). Com isso, ele critica as teorias da transição para a democracia que vêem apenas nos interesses o motor do processo de democratização do Brasil.

De Weber a Schumpeter, a democracia tem sido vista como um “método de produção de governos” (como, aliás, a prática do governo de FHC demonstra – uma vez eleito, todo o poder ao presidente!). Na “teoria das elites” a democracia é vista como uma forma dos grupos dirigentes canalizarem os desejos dos cidadãos; a participação e a distinção entre administração e participação. Habermas teria solucionado esses impasses. Pode-se, com essas idéias, pensar em uma alternativa às teorias da transição para a democracia baseadas exclusivamente nos interesses, na medida em que se crê que uma racionalidade moral (com a noção de direitos universais: civis, políticos e sociais) crescente fundamenta as culturas políticas democráticas.

É com isso em mente que Avritzer se propõe a pensar a questão da democracia brasileira. Encontram-se aqui as principais contribuições de seu livro. O diálogo da teoria derivada de Habermas com a realidade brasileira se mostra rico, apesar de alguns problemas de fundo.

Para Avritzer, o autoritarismo não seria apenas um regime político que deixamos para trás. Ele chama a atenção para outras dimensões do autoritarismo e da democracia. Ele enfatiza a relação Estado/sociedade civil, e os processos internos a esta, como fundamentais para a compreensão da democracia. Nesse sentido, a situação brasileira se mostra muito mais complicada e incerta do que se poderia talvez supor: a transição tem-se realizado sob a égide de uma cultura política das elites essencialmente autoritária. O patrimonialismo das elites (com sua apropriação privada do Estado) e sua recusa da cidadania civil e social mutilam a democracia política, em si já pressionada pelas tentativas de torná-la o mais restrita possível. Pior ainda, infelizmente, afirma ele, as estruturas do Estado moderno e do mercado capitalista parecem ser mais facilmente exportáveis para países fora do centro da modernidade que os princípios éticos e morais da democracia. Mas há hoje uma “disputa” entre duas culturas políticas no interior do sistema político brasileiro: uma derivada das lutas pela democracia e dos movimentos sociais, a outra elitista e autoritária.

As idéias defendidas por Avritzer ajudam a pensar de forma mais ampla a questão da democracia na sociedade brasileira. É verdade que seria possível problematizar a validade de alguns aspectos importantes da teoria de Habermas, e inclusive sua modificação (para melhor em geral) por vezes apenas implícita na leitura de Avritzer. A despeito disso, contudo, é bastante claro que este livro constitui uma importante contribuição da teoria social para compreender e transformar o Brasil na direção de sua democratização.

José Mauricio Domingues é professor no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais –UFRJ.