Estante

toupeira.jpgA toupeira é um animalzinho que vive quase todo o tempo no subterrâneo. Cava túneis e aparece onde menos se espera. Seu esforço foi assimilado por Marx à obra revolucionária. Para Emir Sader ela ressurgiu onde menos se esperava. No início do século 21, eis que uma Nova Toupeira eclode das profundezas da terra. E onde? Na América Latina, subcontinente marcado recentemente por ditaduras e governos neoliberais.

O preâmbulo do livro traz um resumo, com um tom autobiográfico, da experiência da esquerda latino-americana, desde as esperanças desenvolvimentistas e nacionalistas dos anos 50 até os governos de esquerda que predominam no cenário da América Latina atual. É nesse momento que o livro nos indaga de forma incisiva: o que fizemos daquelas esperanças? Pois para a geração nascida a partir dos anos 80 a vida política parece esvaziada. Não vivemos mais a experiência de grandes comícios de rua, de campanhas eleitorais voluntárias e de embates ideológicos polarizados. Os valores neoliberais substituíram tudo aquilo.

O neoliberalismo, em sua faceta latino-americana, ainda não tinha sido definido tão precisamente como neste livro. Lembro-me, por exemplo, do grande mestre Florestan Fernandes agarrando-se a Harold Laski nos anos 90 e rejeitando a própria noção de neoliberalismo. Para ele, a categoria liberalismo já dizia tudo. E o próprio liberalismo já nem tinha condições históricas de subsistir. Mas o mundo dos anos 90 foi radicalmente alterado nos anos 80-90, e o socialismo foi posto em xeque-mate de tal modo que suas formas realmente existentes ruíram. A partir de então, a esquerda se limitou a denunciar o que chamava de neoliberalismo, sem compreendê-lo.

Naqueles anos, não só o socialismo ruiu. A socialdemocracia europeia também. Miterrand e Felipe González aderiram ao novo credo. Mais tarde os trabalhistas ingleses e o SPD alemão fariam o mesmo. Talvez o livro de esquerda que mais impacto causou no estudo desses elementos conjugados tenha sido O Colapso da Modernização, de Robert Kurz. Ainda que pessimista, a obra apresenta uma visão coerente do mesmo processo de desabamento do welfare state e do socialismo, mas aposenta definitivamente a luta de classes e se limita a um olhar europeu. Perry Anderson, por sua vez, havia escrito um ensaio sobre o neoliberalismo, mas detendo-se nas suas origens 54 intelectuais, desde Von Mises e Hayek.

Emir Sader, agora, não só nos define bem a era neoliberal como apresenta um olhar a partir da América Latina. Olhar privilegiado, pois foi nela que uma era pós-neoliberal começou. A corrente neoliberal foi rompida no seu elo mais fraco, como ele diz no livro. Embora ainda não tenha sido superada:

"A derrota do campo socialista em escala mundial foi seguida de um projeto ideológico que substitui o Estado pela empresa e pelo mercado, o cidadão pelo consumo, a regulação econômica pelo livre-comércio, os espaços públicos pelos shopping centers, o trabalhador pelo indivíduo, a ideologia pelo marketing, a palavra pela imagem, a escrita pela mídia visual e o livro pelo vídeo, as concentrações de rua pelas campanhas políticas televisivas, os direitos pela competição, a novela escrita pela telenovela, os jornais pelo noticiário de televisão" (p. 52).

O neoliberalismo foi assinalado por diferentes governos nos anos de redemocratização: Paz Estensoro, na Bolívia (1985); Carlos Menem, na Argentina (1989); Carlos Andrés Perez, na Venezuela (1989); Alberto Fujimori, no Peru (1990); Fernando Collor (1989) e Fernando Henrique Cardoso (1994), no Brasil.

Por que o modelo neoliberal foi possível? Sader argumenta que a hegemonia neoliberal foi uma combinação do militarismo dos Estados Unidos, a mercantilização de todas as relações sociais (cuja utopia são os shopping centers) e o monopólio da mídia privada na formação da opinião pública. Apesar da vitória eleitoral da esquerda, os valores da época neoliberal continuam hegemônicos. Cabe lembrar, como diz o autor, que os temas do debate público fazem parte de uma agenda ainda neoliberal. Assim, a esquerda teve de lidar com questões para as quais não formulara alternativas, como a inflação e a segurança pública.

Sader explica que a classe trabalhadora viveu um processo de fragmentação social e cultural. O discurso neoliberal cria uma identidade falsa que unifica a população na esfera do consumo, enquanto a esquerda clássica, fundada na identidade do trabalho, viu-se diante de uma população submetida a trabalhos precários, eventuais, fragmentários e heterogêneos. A perda da identidade dificultou a organização política e sindical e conduziu à alienação e a outras identidades substitutas: esportiva, étnica e nacional.

Ainda assim, mesmo com um apoio inicial e com o controle da inflação, o modelo se esgotou porque fragilizou as economias da região: elevou a dívida pública, concentrou renda, protegeu o capital especulativo em detrimento da produção e do emprego e, assim, estreitou suas bases de sustentação eleitoral. Isso abriu a oportunidade para que uma onda de esquerda varresse a América Latina.

O pós-neoliberalismo, todavia, apresentou logo seus limites. E talvez o mais simbólico seja Lula, analisado num capítulo inteiro do livro. Lula, nós sabemos, não venceu as eleições quando o movimento dos trabalhadores ascendia (1989), mas sim quando estava em queda organizacional e na defensiva ideológica. Desse modo, ele ganhou com um programa rebaixado. Mesmo assim, impôs as políticas sociais mais efetivas da história recente do nosso país, paralisou as privatizações, impediu a Alca, reforçou o salário mínimo e aumentou a formalidade do mercado de trabalho. Por outro lado, como recorda Sader, não taxou o capital especulativo, não quis incomodar o latifúndio (rebatizado de agronegócio) e não sustentou uma crítica acerba do imperialismo norte-americano.

A ambiguidade de Lula provoca reações equivocadas da esquerda mais radical. Pode-se discordar de Sader, mas seu livro vai direto ao ponto: só há duas opções, confundir-se com a direita nas críticas ao governo Lula ou apoiar seu núcleo progressista e rejeitar seus setores conservadores. Em vez de respaldar o caráter progressista do governo e recusar suas políticas de contemporização com a direita, parte da esquerda aparece unida às grandes empresas de comunicação no ataque ao governo.

O livro termina com uma discussão sobre o desafio estratégico da esquerda. A nova estratégia da esquerda deve pressupor uma prolongada disputa de hegemonia que passa por movimentos sociais, novas formulações, conquista do poder especificamente político e uma abertura para o novo. É isso que Sader tenta desvendar nas suas páginas finais. Aqui não cabe adiantar o prognóstico deste livro inovador. Fica o convite à leitura.

Lincoln Secco é professor de História Contemporânea da USP