Estante

livromoreiraleite.jpgJ´Accuse! (“Eu acuso!”) Com uma carta aberta que encimava esse título o escritor francês Émile Zola rompeu uma cortina de falsas acusações e defendeu o capitão Dreyfuss no dia 13 de janeiro de 1898. Outras são as circunstâncias e os personagens. Ainda assim, exige-se alguma coragem intelectual para que um jornalista da grande imprensa assuma uma visão independente dos fatos atuais.

Paulo Moreira Leite deve ter sido chamado de louco por agir com honestidade diante do assim chamado mensalão. A própria palavra, que o autor não deixa de empregar no título de seu livro, A Outra História do Mensalão, já denuncia uma esmagadora vitória simbólica de parte da grande imprensa contra o Partido dos Trabalhadores.

O vocábulo “pegou” e se tornou inescapável. Assim como a ideia estapafúrdia de que se trata do “maior escândalo de corrupção da história”. Os títulos de dois livros claramente favoráveis à versão oposicionista dos acontecimentos são reveladores: Merval Pereira fez publicar Mensalão: o Dia a Dia do Mais Importante Julgamento da História Política do Brasil (Editora Record) e o historiador Marco Antonio Villa escreveu Mensalão: o Julgamento do Maior Caso de Corrupção da História Política Brasileira (Editora Leya).

Paulo Moreira Leite, ex-jornalista da revista Época, não embarcou nessa nau de bandeira tucana e lanterna na popa. Reunião de artigos escritos no calor da hora, com estilo direto, centrado no leitor e pleno de exemplos simples que facilitam a compreensão dos acontecimentos, seu livro não é nenhuma defesa do PT e dos acusados na Ação Penal 470, e sim uma investigação jornalística isenta que sugere indícios da grande orquestração em que o Supremo Tribunal Federal se baseou para decretar suas injustas sentenças.

Basicamente, segundo a apuração do autor, a compra de votos que o PT teria feito não foi comprovada com casos concretos; o desvio de recursos públicos não foi verificado pelas auditorias contábeis; os empréstimos do PT assinados por José Genoino foram considerados autênticos pela Polícia Federal; as centenas de páginas do inquérito da Polícia Federal não apontam José Dirceu como chefe de nada, muito menos de alguma quadrilha criminosa; as sentenças foram no mínimo exageradas; e os acusados tiveram reduzido seu direito à defesa. Argumentos semelhantes poderiam ser invocados a favor de Henrique Pizzolato, João Paulo Cunha e vários outros condenados.

Mesmo a ideia vendida pela maior parte da imprensa de que poderosos estariam sendo condenados pela primeira vez cai por terra. Em que os dirigentes petistas condenados eram poderosos se comparados com os reais donos do poder econômico no Brasil? O sigilo fiscal e bancário de José Dirceu foi quebrado várias vezes e nada se encontrou de irregular.

A tese central da compra de votos não resiste à simples lógica banal da política. Afinal, por que o PT precisaria comprar votos para a reforma da Previdência, por exemplo, se esta não constava de seu programa histórico e ainda tinha apoio de muitos deputados oposicionistas, como revela o autor?

A verdade é que o sucesso eleitoral de um partido de origens operária e socialista em 2002 causou pânico nas oposições. A moderação assumida na Carta ao Povo Brasileiro não acalmou os adversários políticos, antes os alarmou. Sofreram com a hipótese de não inviabilizar a sustentação social e eleitoral do governo. Em 2005, diante da perspectiva de reeleição de Lula, a oposição finalmente reencontrou seu leito histórico: a linguagem chula do moralismo preconceituoso. Assim, deu o primeiro passo na trilha das denúncias ampliadas convenientemente pelos seus aliados da grande imprensa. O golpe abalou a imagem do PT, mas não impediu suas sucessivas vitórias desde 2006.

O segundo passo da oposição foi buscar apoio no Supremo Tribunal Federal. O leitor desse livro compreenderá definitivamente que as acusações contra o PT foram uma reação termidoriana, como a qualificou Paulo Moreira Leite, feita fora das urnas por aqueles que foram derrotados pelo voto.

Quando um ex-ministro do STF denunciou um “projeto de poder de continuísmo” por parte do PT, talvez tivesse cometido um ato falho, pois oficialmente não era o partido que estava em julgamento. No entanto, estava! O corolário da fala do ministro é que a alternância no poder é necessária. Mas o PT só continua no poder porque é eleito. A Suécia não é uma ditadura por ser governada há decênios pela social-democracia. No presidencialismo a rotatividade deve ser da pessoa, para que ela não personalize demais o poder, mas não do partido.

Doravante, a luta da oposição fluirá pela ilusão do conflito entre poderes. Por enquanto a grande imprensa acusa o velho Congresso Nacional, o mesmo que foi aplaudido ao cassar o mandato de José Dirceu, por ainda não ter cassado José Genoíno e João Paulo Cunha simplesmente por seguir o artigo 55 da Constituição, cuja redação é tão explícita que causa espanto que ministros do STF tenham solicitado ao Congresso o contrário do que diz a lei.

E a história não para. Mais recentemente, o Supremo Tribunal Eleitoral aprovou as contas do PT de 2003, sob reclamação da imprensa. É que, como diz Paulo Moreira Leite, a oposição e parte da imprensa se confundem.
Lincoln Secco é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate e autor de A História do PT (Ateliê, 2012)