Estante

capa A Palavra Afiada

A editora Ouro sobre Azul publica um livro que reúne entrevistas, análises e cartas deixadas por Gilda de Mello e Souza (1919-2005), organizado por Walnice Nogueira Galvão. O título, A Palavra Afiada, não parece ser o mais apropriado. A escrita da autora, assim como era sua fala, não corresponde às sugestões que “afiada” provoca: cortante, contundente, alerta, resposta acerba, vivacidade nervosa. Ao contrário, a expressão é calma, discreta, perfeitamente ajustada ao raciocínio. Nada de veemente ou de incisivo. A personalidade generosa da autora sugeria tranquilidade sempre.

Não importa o título, porém. São páginas preciosas.

Nós, seus alunos no Departamento de Filosofia da USP, a chamávamos de dona Gilda. Ela era elegante, e seu encanto brotava, em grande parte, de uma timidez que transparecia nas aulas, acompanhadas pelo sorriso de quem busca aprovação.

Havia clara disparidade entre sua força intelectual e sua modéstia. Creio que é essa a principal razão por ter produzido menos do que poderia. Era perfeccionista e hesitava ao escrever. Sua tese, O Espírito das Roupas – estudo propriamente filosófico sobre a moda –, tornou-se um clássico, no mais belo sentido do termo, tão indispensável quanto o Sartor Resartus, de Carlyle. O Tupi e o Alaúde, pequeno volume, mas profunda análise, contém algumas das chaves mais importantes para compreender a obra e o pensamento de Mário de Andrade.

Outros livros são coletâneas de textos esparsos. Em todos transparece a característica de um estilo que possui todo o apuro discreto, e deixa à inteligência o poder de subjugar. É a inteligência que desencadeia as percepções capazes de surpreender o espírito graças à novidade. É ela que escolhe a clareza mais transparente, capaz de iluminar sem piruetas nem jargões. “Escreva claro”, ela dizia. E acrescentava com ironia suave: “Embora as pessoas admirem mais aquilo que não compreendem...”

Há, porém, uma dona Gilda que deslumbrava imediatamente, e que a morte levou. Aquela que falava sem a angústia da aula para dar e recebia seus alunos para longas conversas em sua casa da rua Briaxis. Íamos, em dois ou três, visitá-la. Era muito difícil ir embora, porque perguntávamos e, quando ela concluía um raciocínio, suas palavras imediatamente suscitavam novas questões. Sabia ouvir nossas bobagens bastante pretensiosas de aspirantes a intelectuais e fecundá-las de maneira que nos atordoava. Ela nos fazia sentir mais confiantes e, mesmo, mais inteligentes.

Por isso este livro, A Palavra Afiada, é tão valioso. Composto na maior parte por entrevistas, contém algo daquele modo pessoal, íntimo e brilhante de suas conversas. Está claro que, para mim, e para todos aqueles que com ela conviveram, sua leitura é comovente. Mas para outros, que não a conheceram, talvez seja a obra a ler primeiro, antes de adentrar em O Espírito das Roupas, A Ideia e o Figurado, Exercícios de Escrita. Poderão assim apreender melhor a natureza de sua inteligência, que não se separava da generosidade humana.

As entrevistas trazem observações fecundas sobre o cinema, a pintura, a literatura, sobre as artes, enfim. Há também depoimentos sobre sua infância, sua formação e, sobretudo, suas relações com o primo Mário de Andrade. Gilda de Mello e Souza sublinha as dificuldades de ser uma universitária na São Paulo dos anos de 1930 e 1940. Mulher enfrentando um mundo de homens, os obstáculos de tal situação são expostos com objetividade. Adquirem, no entanto, um caráter dramático e doloroso bem inesperado em algumas cartas que o livro inclui, nas quais se confiou a Mário de Andrade. Elas revelam peso suplementar e pessoal próprio ao conservadorismo de época trazido pela família interiorana.

Completam as entrevistas e as cartas alguns ensaios publicados esparsamente. Todos iluminam o objeto estudado (dois particularmente notáveis, sobre Beckett e sobre Clarice Lispector) e, além, ensinam pelo exemplo como analisar, como entender um grande escritor.

Lamento apenas uma lacuna no livro. Nas entrevistas, Gilda de Mello e Souza refere-se algumas vezes à sua vocação inicial de ficcionista, que abandonaria pelos trabalhos universitários. Nas cartas a Mário de Andrade, discute a escrita de alguns contos, posteriormente publicados na revista Clima. São apenas três, e portanto não suficientes para constituir um volume autônomo: “Week-end com Terezinha”, “Armando deu no macaco” e “Rosa pasmada”. Apenas três, mas longe de serem insignificantes, como tão belamente mostrou Vilma Areias, em análise que fez deles para a revista Discurso.

Jorge Coli é professor titular e diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp