Estante

O papel histórico do debate sobre a chamada questão agrária brasileira foi o de mostrar o emperramento das estruturas agrárias e seu caráter antimoderno, garantindo assim a reprodução, até recentemente, de relações sociais de produção não capitalistas e a produção de uma cultura política patrimonialista e autoritária. Tais análises insistem na necessidade de um projeto de transformações revolucionárias para o setor. A reafirmação da centralidade desta questão enquanto preocupação explicativa da realidade rural brasileira e o resgate de parte do debate sobre ela, pelo bico da pena de alguns de seus mentores, é a proposta do livro A Questão Agrária Hoje. Realidade hoje predominantemente capitalista acumulando, porém, as contradições históricas não totalmente superadas, inerentes ao latifúndio e à cultura política.

Está também na concepção do livro a constatação de que a discussão sobre a questão caiu "de moda" no meio acadêmico e junto à opinião pública com a "derrota política da reforma agrária", no final da década passada, florescendo, porém, em outros "espaços", ONGs e movimentos sociais. Daí a preocupação em relançar para aquele meio "os principais artigos do debate atual da questão". A coletânea reúne Jacob Gorender, Ariovaldo de Oliveira, José Eli da Veiga, Ricardo Abramovay, Ademar Romeiro, José Graziano da Silva, Paulo Sandroni, José Gomes da Silva, Maria Emilia Lisboa Pacheco, José Graziano Neto, Horácio Martins de Carvalho, Claus Germer e Cândido Grzybowski. Presta, segundo a apresentação, um reconhecimento a formadores de opinião, selecionados por possuírem "um envolvimento direto e prático no dia-a-dia da luta pela reforma agrária".

O critério subjetivo de escolha de autores e textos por Stédile, principal ideólogo do MST, se orientou pela convicção de que ainda há uma questão agrária específica, objeto de reflexão, cujo foco atual seria o do caráter da reforma agrária (democrática, complementar ... ) e das transformações no agrário e não mais o da natureza (feudal, colonial ou capitalista) do modo de produção. De certa forma, os autores concordam que a realidade dos anos 80 é outra e resultou de transformações profundas produzidas pela "modernização" do modelo tecnológico e da base técnica produtiva. É preciso, portanto, repensá-la com novos enfoques e argumentos. Sem isto, a continuidade do processo será conservadora, sem rupturas na sua estrutura fundiária, sem mudanças na composição das classes, permanecendo descompromissada com as necessidades e os interesses da sociedade e articulada politicamente contra a inclusão dos excluídos da terra.

Preocupado com a diversidade de autores notáveis e heterogeneidade do debate recente, o livro não supera um hiato que vem se arrastando ao longo do tempo: de um lado, a representação intelectual sobre a realidade e de outro lado a realidade sobre a qual se constrói a representação. O pensamento acadêmico, mesmo o da esquerda, carrega como dívida social, a ser resgatada, sua histórica incapacidade de incluir na produção teórica importantes segmentos sociais, como por exemplo os sem-terra e os produtores agrícolas familiares com suas especificidades. Segmentos estes também criadores do social, do capital econômico e simbólico (cultural) da nossa sociedade. Por isso, dignos de inclusão como cidadãos, no saber científico. Para isto, oferecem uma longa experiência histórica de inserção nas lutas sociais, credenciando-lhes o reconhecimento de co-participes das transformações, principalmente no último meio século. O outro lado do hiato é o da realidade histórica com sua dinâmica inovadora de formas sociais diversas, de dinamismos econômicos, de crescente participação política e de expressões culturais criativas. Mesmo afirmando regionalidades e reproduzindo desigualdades e contradições, a realidade agrária brasileira segue sua trajetória e transforma-se sem esperar pela formulação das idéias sobre ela.

A Questão Agrária Hoje reúne e organiza trabalhos dispersos, em parte já conhecidos e que se prestam tanto para uso isolado quanto para a busca de elementos de (re)leitura da questão, sendo assim mais uma referência para a reformulação de políticas de desenvolvimento.

Ivaldo Gehlen é professor de políticas de sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.