Estante

"... Pois quem toca o trem pra frente também de repente pode o trem parar..."

(Chico Buarque, in Linha de montagem)

E de repente o trem ficou. "Braços cruzados, máquinas paradas." Eram os metalúrgicos do ABC paulista desligando as máquinas da produção capitalista e acelerando o motor da História. Pegaram de surpresa não só os maquinistas de plantão da autocracia burguesa como também os passageiros assustados da oposição liberal e da esquerda tradicional. A freada é tão brusca que abala o trajeto de uma bem planejada viagem, "lenta e gradual", de transição da ditadura militar para a institucionalização da autocracia. Surge o elemento novo, o inesperado, o impensado. "A flor furou o asfalto", diria Drummond. O povo mais avançado e moderno do operariado brasileiro tira o trem dos trilhos. Onde vai dar o novo percurso, só a História dirá; porém, Ricardo Antunes no livro A rebeldia do trabalho traz à luz do debate vários elementos que por certo ajudarão a compreender a guinada que se processou na história recente da luta de classes no Brasil, com a indução do movimento grevista dos trabalhadores metalúrgicos no ABC paulista nos anos de 78, 79 e 80.

Num trabalho vigoroso dividido em duas partes, o autor mergulha na análise dos elementos que precederam as greves, seu desenvolvimento e suas diversidades, e traz à tona várias afirmações e questões para o debate.

Na primeira parte, "O sentido imanente das greves", Antunes trata de resgatar, por meio de pesquisa, depoimentos de lideranças e militantes daquele movimento, o caráter espontâneo da greve de 78 e das paralisações parciais e por fábricas, a maior preparação por parte dos sindicatos - especialmente o de São Bernardo - e as greves gerais e plebiscitárias de 79 e 80. No entanto, o autor ressalta que o maior envolvimento do instrumento orgânico de luta dos trabalhadores não tira destas últimas o caráter de movimento espontâneo, uma vez que a "ausência de uma direção política consciente, dotada de independência técnica e ideológica", se em 79 não foi motivo para evitar uma espetacular vitória, já em 80 não conseguiu romper com a lógica do poder político do capital – na época, melhor preparado e estruturado para o confronto - e conduziu a luta ao isolamento político-social e à derrota, por não compreender plenamente "a contextualização social e política vigente".

Rebatendo outras teses, o autor enfatiza que a causalidade do movimento grevista era fundamentalmente de luta contra a superexploração do trabalho, o que não impediu que as greves tomassem acentuado caráter político, já que se chocavam de forma frontal com a política econômica do governo e, por conseqüência, com o modelo de transição conservadora.

Outros elementos presentes naquelas lutas também são atualizados, como a luta contra o despotismo nas relações de trabalho e o questionamento da estrutura sindical vigente.

Se, para Antunes, nos dois primeiros anos a ação grevista dos metalúrgicos trouxe inegavelmente o aumento da consciência operária, em 1980 a avaliação da direção de que o movimento fora vitorioso, "em flagrante contraste com a realidade concreta, teve como resultantes não um avanço no plano da consciência operária mas um significativo retrocesso" e "ao incentivarem a recusa do elemento consciente e ao propugnarem pela vigência de práticas espontaneístas, tiveram resultados adversos".

De quebra, a leitura do livro ajuda a esclarecer os limites do liberalismo político, presente numa das concepções da época, e de como isso resulta, no plano sindical, na criação de duas centrais sindicais (hoje, CUT e CGT) com concepções bastante distintas e, no plano político-partidário, no surgimento do Partido dos Trabalhadores como instrumento político de classe.

Na segunda parte do livro, "Aspectos do complexo brasileiro", o autor trata de aspectos estruturais da política e da economia, que configuram a sociedade brasileira da época, e da conformação do setor metalúrgico da indústria automobilística do operariado brasileiro.

Antunes rechaça a tese da formação de um setor aristocrático do operariado metalúrgico na indústria automobilística, o que impediria o surgimento de movimentos de caráter revolucionário, ressaltando que essa categoria, "ao contrário, vivia essa dura realidade, dada pela expropriação, em níveis extenuantes e intensos, da dimensão absoluta e relativa do sub-retrabalho".

Nas conclusões, Antunes exercita os conceitos de trabalho, estranhamento (prefere esse termo a "alienação") e greve, dando ainda um tratamento às mais diversas categorias de greve - espontânea ou não-espontânea, econômica, política, geral anarquista, geral política acidental, de protesto político, política de massas, ofensiva, defensiva, parcial e geral; encerra polemizando sobre greve espontânea e visão espontaneísta da greve.

Um livro no mínimo polêmico, sobretudo para aqueles que se ufanam e incentivam o caráter espontâneo das lutas operárias na história recente do nosso país. Por certo uma obra obrigatória, imperdível para aqueles que se preocupam em analisar mais profundamente as causas, o desenvolvimento e as conseqüências dos acontecimentos que colocaram a "república de São Bernardo" e todo o ABC paulista nas páginas da Estória e que por certo darão ainda muito o que falar, sob a pena de, se não o fizermos, correremos o risco de perder o trem da Estória.

O título dessa resenha faz alusão à capa do livro, que merece nosso aplauso; o mesmo não acontece com o trabalho de revisão da editora, que por vezes chega a comprometer o texto.

Jeter Gomes é assessor da Secretaria Nacional de Formação da CUT-Nacional.