Estante

O livro Eleições 2022 e a Reconstrução da Democracia no Brasil oferece uma visão ampla e abrangente das Ciências Sociais acerca do cenário político e eleitoral do país – tanto no que diz respeito ao pleito do ano passado quanto de seus desdobramentos. A publicação, organizada por Leonardo Avritzer (coordenador do Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação – INCT/IDDC, do Observatório das Eleições e professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais),  Eliara Santana (jornalista, doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela PUC Minas, pesquisadora do Observatório das Eleições) e Rachel Callai Bragatto (pesquisadora em estágio pós-doutoral no INCT/IDDC e editora do Observatório das Eleições), registra o trabalho do Observatório das Eleições do Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação durante o processo eleitoral, que publicou mais de 200 artigos entre agosto e outubro de 2022 em diversos veículos de comunicação.

O livro tem o objetivo, de acordo com os organizadores, de analisar um dos pleitos “mais complicados das últimas décadas no Brasil, em especial, no que toca aos abusos de poder e ao desrespeito às regras do jogo” (p.9). Para tanto, a publicação é organizada em quatro seções, que serão aqui brevemente sintetizadas.

Na primeira parte do livro, intitulada “Erosão democrática e processo eleitoral”, os autores e autoras mostram que existiu forte continuidade entre o processo de degradação da democracia, de polarização política e o próprio processo eleitoral, disputado em um terreno marcado por um ambiente “semidemocrático construído pelo bolsonarismo” e pelo uso da máquina pública pelo governo. Em seu artigo, intitulado “Eleições e Democracia”, Avritzer discorre sobre pesquisa do INCT/IDDC que apontou uma recuperação, ainda que parcial, da confiança dos brasileiros na democracia – 59% a preferem, comparado a outras formas de governo. Ressalta, no entanto, que existe um longo caminho a ser trilhado na recuperação das instituições democráticas e na reconquista da capacidade de construir a governabilidade em um país tão dividido.

Felipe Nunes e Thomas Traumann, em “A eleição que calcificou o país”, apontam para um processo que denominaram de “calcificação” das preferências políticas do eleitorado brasileiro: o pleito de 2022 teria evidenciado a consolidação de um processo que fez do Partido dos Trabalhadores o mais importante partido do Brasil, cujas preferências eleitorais de seus eleitores orbitam em torno da aprovação ou rejeição à agremiação. Na eleição presidencial, eleitores não somente expressaram preferências, mas manifestaram suas identidades (processo semelhante ao partisanship que marca a polarização eleitoral nos Estados Unidos da América há décadas) – os autores se baseiam em dados do instituto Quaest (comandado por Nunes), referentes à evolução da avaliação de Bolsonaro e ao que chamaram de “polarização afetiva”, utilizando de exemplo a tolerância ou não a ter, por exemplo, um genro ou nora de posição política diferente à do respondente/da respondente da pesquisa. Os autores consideram que tais questões prometem ser um desafio para o terceiro governo Lula.

Outros artigos também se destacam, como o escrito pela equipe do Centro de Estudos de Opinião Pública – Cesop/Unicamp (que destaca a continuidade entre os pleitos de 2018 e 2022, e a importância de segmentos como as mulheres, os religiosos, o voto por região e o peso do voto de baixa renda – temas sobre os quais Núcleo de Opinião Pública, Pesquisas e Estudos - Noppe da Fundação Perseu Abramo também se debruçou nos últimos anos), o de Marjorie Marona, que aponta a importância das respostas celeres e firmes do TSE aos “embustes” promovidos pelo bolsonarismo, e o de Leonardo Barros Soares, sobre o que pode-se esperar para a agenda ambiental após as eleições de 2022. Segundo o autor, a vitória nacional contra a agenda de desproteção ambiental promovida por Bolsonaro contrasta com as vitórias locais de candidatos no mínimo subservientes à agenda bolsonarista e de grupos predatórios, em especial na maior parte das eleições para governador nos estados amazônicos e nas eleições para o Congresso Nacional.

A segunda parte, intitulada “Redes sociais e o ecossistema de desinformação”, consolida leituras que apontam que, se em 2018 a disseminação de fake news pura e simplesmente se apresentavam como grandes perigos para a democracia, em 2022 a operacionalização de um sistema integrado de desinformação, que se articulou dentro do Palácio do Planalto sob a égide bolsonarista com conivência das grandes empresas de comunicação, ameaçou a integridade do processo eleitoral brasileiro. Eliara Santana, em seu artigo “Ecossistema de desinformação se consolidou com o bolsonarismo”, explicita tal ponto, traçando as tentativas de limitar o impacto de tal ecossistema e a conivência das big techs, que se beneficiam da existência deste1. Helena Martins, em “A disputa na internet: plataformas, desinformação e impactos na democracia”, analisa que tais problemas poderiam ter sido mitigados pelo PL 2.630, das Fake News, e que a vitória eleitoral se deu apesar da desinformação espalhada nas redes, e não por conta de um êxito em contê-la.

Na terceira parte do livro, “Democracia em dois turnos”, o conjunto de artigos aponta que o Brasil está distante do equilíbrio na representação de sua população segundo os critérios de gênero e raça, e que a direita se tornou majoritária no Congresso Nacional. O recuo do centro e da esquerda no parlamento é destacado por Carlos Ranulfo Melo, em “Câmara dos Deputados 2022: direita tornou-se majoritária, esquerda e centro recuaram”. Machado et. al. demonstram o desequilíbrio na representação de mulheres e da população negra, enquanto Carla Rosário e Ana Luísa Machado de Castro apontam que candidatos negros à presidência não foram convidados para os debates eleitorais, e que poucos jornalistas nos debates eram negros, gerando a “ausência de representação negra descritiva e substantiva e a omissão de proposições políticas de combate ao fenômeno nas falas dos candidatos”, reforçando o racismo estrutural.

Por fim, na quarta e última parte, “Governabilidade e o futuro da democracia: desafio para o governo Lula”, os autores e autoras defendem que o futuro da democracia depende da estabilização da governabilidade a partir de amplas coalizões, cujo elemento central tem de ser a adesão à própria democracia, na tentativa de isolar o bolsonarismo e o radicalismo de direita como um todo. Carlos Ranulfo Melo, em “Como será a democracia brasileira em 2026?”, ressalta os perigos que uma possível reeleição de Bolsonaro em 2022 oferecia ao Brasil, ao passo que autocratas mundo afora endureceram seus respectivos regimes em seus segundos ou terceiros mandatos. Segundo o autor, Lula tem o desafio de governar um país polarizado, com uma extrema-direita que pode ter se estabelecido como atores permanentes na cena pública e política. Avritzer, em “O futuro da democracia no Brasil”, afirma que a reconstrução democrática no Brasil dependerá de um “equilíbrio virtuoso” entre forças políticas e instituições.

A obra, em seu conjunto, é pertinente para o debate atual sobre o futuro político e democrático do Brasil e para compreender os riscos que o país viveu no pleito de 2022. A organização em seções é bastante competente em trabalhar a temática sob a luz da opinião pública e da comunicação digital, além dos desafios políticos e institucionais de ordem estrutural e não conjuntural (como os desafios de ampliar a representatividade política das mulheres e da população negra). Ainda, presa em colocar na balança como é possível governar um país dividido em tantos temas primordiais para o futuro da nação, especialmente o tema da emergência climática – no qual o Brasil possui um desafio e protagonismo latentes no cenário global. Olhar não somente para a vitória hercúlea de 2022, mas também para a questão fundamental que se coloca, de como isolar a direita radical no próximo período, é bastante lúcido.

Para além dos desafios estruturais e institucionais, de forma complementar às visões expostas na publicação, o acúmulo que temos tido em discussões no âmbito do Noppe/FPA e do Centro de Análise da Sociedade Brasileira (Casb) permite acrescentar à essa equação uma variável fundamental para o futuro democrático do país: o bom desempenho do atual governo, do ponto de vista econômico e social, também é crucial para enfraquecer os discursos antidemocráticos e radicais de direita derrotados na eleição presidencial de 20222. Estes operam no plano global justamente nas frustrações de uma população com democracias que nunca se realizam plenamente, especialmente no contexto neoliberal, como já alertado outrora por teóricos também preocupados com a extrema-direita em outros contextos da História3. Afinal, como já havia dito Theodor Adorno, em 1967, os movimentos radicais de direita são “as feridas, as cicatrizes de uma democracia que até hoje ainda não faz justiça a seu próprio conceito”4.

Matheus Tancredo Toledo é doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e analista do Núcleo de Opinião Pública, Pesquisas e Estudos (Noppe) da Fundação Perseu Abramo