Se por acaso o leitor encontrar livro com esse título nas livrarias reais ou virtuais, e se deparar com o nome do autor, Emiliano José, não se assuste ou pense tratar-se de homônimo. Eu próprio me espantei quando vi a capa pela primeira vez, no site da Kotter Editorial. Mas é o próprio, Emiliano José, o mesmo que escreveu mais de uma dezena de livros sobre eventos e personagens da história política brasileira, um dos principais memorialistas dos horrores da ditadura civil-militar e do Golpe de 1964.
O autor de “Lamarca, o Capitão da Guerrilha”, “Marighela, o inimigo número 1 da ditadura militar”, “As asas invisíveis do padre Renzo” e tantos outros, fez uma incursão inusitada e inédita em seu primeiro livro de ficção. E ainda mais surpreendente, voltado para o público infanto-juvenil.
Não se enganem, porém.
O livro é, no fundo, uma alegoria sobre um mundo capaz de maldades contra seres indefesos, e como eles (no caso, gatos) foram habilidosos em reagir às iniquidades dos indivíduos que se julgam superiores e com mais inteligência. Ou seja, uma mensagem política, afinal. Um recado para as próximas gerações de que é preciso defender a natureza e estar ao lado dos pequenos. O futuro do “planeta azul” dependerá da vida em harmonia entre todos que nele habitam.
Hábil em descrever a aridez das perseguições, torturas e mortes de opositores do período militar, Emiliano José tem o nome gravado entre os maiores autores de livros de não-ficção. Foi assim desde sua estreia como escritor, em 1980, quando “Lamarca” foi lançado e permaneceu por mais de um ano entre os mais vendidos, em um ranking produzido pela revista Veja.
De lá para cá, transformou-se em autor de importantes obras sobre os anos de chumbo, a contar sua própria história de ex-preso político e dos companheiros aprisionados nos cárceres da Bahia. Surpreendente, portanto, que tenha saído de sua “zona de conforto”, para aventurar-se na ficção, na literatura infantil. Pergunto a Emiliano o que motivou escrever sobre essa “revolução” imaginária.
Ele explica: um ato de sadismo ocorrido no condomínio em que mora atualmente, a morte por envenenamento de quatro gatos de rua. A crueldade praticada por algum morador ainda não identificado comoveu os demais habitantes do lugar e sensibilizou o escritor.
No recanto onde reside atualmente, denominado Aldeia Jaguaribe, um condomínio que mais parece um paraíso verde no coração de uma megalópole, Salvador, Emiliano José imaginou uma espécie de novo planeta habitado por bichos vivendo em harmonia que, de repente, tiveram que conviver com seres humanos.
Na fábula, os pequenos animais buscaram refúgio nesse lugar, após a destruição da Terra. Não sei se o autor mirou uma realidade vivida na capital baiana, cada vez mais verticalizada e concretada.
Vítima da especulação imobiliária, a cidade assiste ao edil pavimentar os rios e autorizar a “desafetação”, palavra estranha que nem sabia existir, que permite que as poucas áreas verdes sobreviventes sejam destruídas para abrigar mais prédios, viadutos e hipermercados. Aos jornalistas, o prefeito justificou a limpa nas áreas verdes com a frase: “por que essas áreas não servem pra nada!”.
Sem árvores no resto da cidade, os “bípedes”, no imaginário do autor, descobriram esse recanto que ainda se mantém intacto, e imigraram para lá. Em princípio, contra os desejos da harmonia do lugar, os humanos não tardam em querer impor suas regras, o desrespeito, a xenofobia contra os animais, estes, como os seres humanos, primeiros habitantes do Planeta Azul.
Não restou aos gatos e os demais povos originários buscar o caminho da revolução, se unirem para enfrentar a sanha destruidora dos invasores.
Tantas as ameaças.
“Pensaram em construir um sistema anti-gatos”.
“Gatos de outros planetas não poderiam entrar”.
“Pensaram em construir muros”.
O livro de Emiliano José é apresentado sob forma de conto infantil.
As ilustrações e a capa de Jussara Salazar, belíssimas por sinal, reforçam esse perfil.
Verdade seja dita, é mais do que isso. “A revolução dos gatos no planeta azul” é um libelo a denunciar os inquietantes tempos vividos no mundo de hoje, a ser lido por leitores de qualquer idade.
Antes até da posse do presidente americano Donald Trump e de sua odiosa política de perseguição aos imigrantes, o autor já havia falado em seu texto sobre expulsões, muros da vergonha e ódio aos estrangeiros.
Antecipou uma nova ameaça da volta do fascismo e do nazismo. Como uma premonição, a saudação do homem mais rico do mundo avisa que desta vez chegaram pra impor sua antidemocracia.
Por isso, cabe a nós, gatos e humanos amantes da liberdade e da paz defender nossos valores. E nosso Planeta Azul.
Everaldo de Jesus é jornalista e historiador, autor do livro “Do silêncio do claustro ao ruído das ruas: Dom Timóteo e a resistência à ditadura civil-militar na Bahia”