Estante

Muito se tem escrito sobre aqueles anos de chumboMuito se tem escrito sobre aqueles anos de chumbo, em que militantes clandestinos se lançaram a uma guerra sem quartel e sem perspectiva contra um extraordinário aparelho de segurança e propaganda controlado diretamente pelas Forças Armadas. Muitas são as memórias, as tentativas de entender como e por que esperanças radiosas tão rapidamente se revelaram ilusões trágicas. Muitos os olhares que perscrutam numa derrota aparentemente indecifrável a riqueza de uma experiência existencial ímpar, resgatando e buscando preservar uma vivência que só a generosidade, a paixão e a revolta são capazes de engendrar. Literatura de sobreviventes, que olham para si mesmos, para todos os que estivemos lá, para aqueles que não sobreviveram.

Há que reconhecer, no entanto, que em raras ocasiões estes personagens, suas convicções e suas relações com o processo histórico global foram tomados como objeto de pesquisa e reflexão sistemáticas, amparadas no rigor fornecido pelas múltiplas ciências do social, em particular pela História. Passado recente, passado presente: talvez isto explique a relativa omissão dos historiadores. Talvez um pacto implícito de não mexer indevidamente em feridas que a transição transada considera ainda não cicatrizadas. Ou, quem sabe, a vontade de silenciar sobre os maus momentos... já que a luta continua?

Por causa deste renitente vazio acerca de uma passagem fundamental de nossa história política, grande era a expectativa em torno do trabalho de Daniel Aarão Reis, produzido originalmente como tese de doutoramento ao Departamento de História da USP. Poucos, como Daniel, poderiam somar, neste mergulho, a experiência vivida de incansável e brilhante militância política com sólida formação e já larga trajetória na investigação histórica.

Daniel recolheu pacientemente riquíssima documentação1. Mas parece que deu por concluída aí sua tarefa de historiador: de posse do material, fez obra de ideólogo. Seus comunistas são universais, não estão referidos a um processo histórico determinado em que a constituição de concepções, linhas políticas e práticas possa ser entendida, ela também, como história. Entre os comunistas, é o que nos sugere, não há história; apenas memória, eterna e monótona repetição dos mesmos mitos e das mesmas regras.

Quem são estes comunistas? Segundo o autor, eles constroem um projeto próprio, sem vinculação a nenhum interesse ou grupo social, sem referência à dinâmica da luta de classes ou à experiência internacional, cegos às estruturas e conjunturas. Falam no proletariado, mas "constroem quadros orgânicos destinados a submeter-se à hegemonia dos trabalhadores intelectuais de classe média" (pág. 17). Coesos em torno de alguns mitos fundadores - inevitabilidade da revolução socialista, missão revolucionária do proletariado, necessidade do partido de vanguarda -, organizam sua prática através de uma série de dispositivos que o autor engloba sob a expressão "estratégia da tensão máxima" - "complexo da dívida" do militante com o partido, massacre das tarefas, esmagamento do indivíduo frente à vontade do partido e ao leque de virtudes exigidas de cada um, síndrome da traição, dinâmica antidemocrática e celebração da autoridade, ambivalência das orientações, admiração e desprezo pelos intelectuais revolucionários etc.

Estes são os comunistas. Os do PCB, tanto quanto os ex-militares do grupo de Lamarca, os da ALN de Marighella e os da Polop. Iguais entre si, iguais aos comunistas em geral: àqueles que fizeram a resistência antinazista, a Guerra Civil Espanhola, as Revoluções Russa, Chinesa, Cubana, Vietnamita. Aqui como lá, no passado recente ou remoto, os comunistas sempre se estruturaram sobre a base das mesmas concepções e práticas elitistas, voltados para a manutenção em permanente alerta de um Estado Maior Revolucionário apto a cavalgar a primeira oportunidade que surja. Neste sentido, o autor conclui que a origem da derrota dos comunistas brasileiros não está nos seus desvios e erros frente aos paradigmas clássicos - bolchevique, maoísta, cubano. Aqui, como lá, estiveram permanentemente prenunciando a deflagração imediata da convulsão revolucionária e se prepararam da mesma maneira ... Só que, no Brasil, a revolução faltou ao encontro.

Tese tão difícil de negar como de comprovar. Mas tese que revela o verdadeiro conteúdo de um trabalho que se pretendia histórico sobre os comunistas brasileiros, mas que se revela uma avaliação da natureza geral e intrínseca do movimento comunista em geral e suas organizações. Não se trata de abrir aqui uma polêmica sobre a pertinência ou não das marcas que o autor atribui aos comunistas. Em primeiro lugar, porque muitas delas são partilhadas por muitos outros grupos e organizações políticas (como esquecer, para citar apenas um exemplo, a importância dos professores da escola leiga, típicos pequenos-intelectuais de classe média, na constituição do social-radicalismo francês?). Trata-se, isto sim, de perguntar até que ponto e de que modo os agrupamentos comunistas brasileiros reais encarnaram historicamente tais atributos.

A impressão que fica para o leitor é que estes tais comunistas surgem do nada, para organizarem a si mesmos em torno de grandes ilusões e acabarem presos, torturados e mortos nas mãos dos militares. E que se a revolução tivesse comparecido, talvez estivessem hoje no poder.

As estatísticas são usadas para provar que eles eram poucos, isolados das classes não tão desfavorecidas. Não há uma tentativa sequer de análise das razões que levaram tantos desses jovens intelectuais dos grandes centros urbanos do país a esta admirável e terrível aventura. Afinal de contas, a conclusão já estava colocada no pressuposto: eles não expressam nenhum grupo ou interesse social, nem estão voltados para isto.

Daniel Aarão Reis, por paradoxal que pareça, fez de sua análise a mais perfeita e completa reprodução do ethos e da lógica da corrente político-ideológica que colocou no banco dos réus: ele os tomou fora da história, fora do tempo e de um lugar concreto, ele assumiu que o tal projeto próprio é realmente algo que surge de si mesmo e não expressa nenhum segmento. Ele os caricaturou e, neste movimento, tornou caricatural sua análise. Embora tenha razão ao afirmar que "as organizações de vanguarda gozam de uma ampla autonomia em relação às classes sociais cujos interesses dizem defender", engana-se redondamente ao acreditar que isso as torna autônomas em relação à dinâmica geral das classes sociais, aos grandes embates e transformações que, nos mais diferentes níveis, conheceu a sociedade brasileira.

A pergunta a respeito das origens da derrota acabou por amarrar o autor a um campo de discussão que, certamente, subordinou o olhar do historiador às preocupações do ideólogo. Talvez tivesse sido diferente se, ao invés de se perguntar por que aqueles jovens intelectuais urbanos de classe média foram derrotados, houvesse perguntado por que foram levados a engajar-se numa opção tão radical. Esta é uma questão que continua colocada para os historiadores: para aqueles que fazem a história política, como para os que vêm se consagrando à história das idéias, dos processos de formação de identidades minoritárias, das transformações nos modos de conformação e operação de idéias hegemônicas em segmentos particulares da sociedade. Daniel Aarão Reis, pela competência, pelo conhecimento que tem da história contemporânea brasileira, pelo compromisso com a lucidez e a inteligência, certamente poderá contribuir enormemente neste trabalho.

Carlos Wainer é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ.