Estante

A roleta globalO livro de Peter Gowan, publicado em 1999 pela editora inglesa Verso e agora lançado no Brasil pela Record, é provavelmente a mais penetrante análise sobre a evolução das relações mundiais de poder nas últimas décadas. Ganhadora do Prêmio Isaac Deutscher, a obra resistiu às não pequenas modificações no contexto internacional que se sucederam desde então – a eleição de Bush, os atentados de 11 de setembro de 2001, as guerras imperiais conduzidas pelos Estados Unidos contra o Afeganistão e o Iraque, os conflitos interimperialistas com a França, as crises nas bolsas, a recessão econômica internacional, as disputas na OMC entre os países centrais e os países periféricos. Na verdade, grande parte dessas questões já era claramente visualizada pelo autor, um dos mais conceituados especialistas em Europa Oriental e editor da New Left Review e da Labour Focus on Eastern Europe.

Gowan parte de uma cons­tatação: sob o governo Clinton, Washington impulsionou “duas novas formas de alterar os ambientes interno e externo dos países de modo a os induzir a continuar a aceitar o domínio político e econômico dos Estados Unidos. A transformação dos ambientes internos dos países assume o nome de neoliberalismo: envolve uma mudança nas relações sociais internas em favor dos interesses do credor e do investidor, com a subordinação dos setores produtivos aos setores financeiros, e com uma tendência a afastar da riqueza, do poder e da segurança a maior parte da população trabalhadora. A transformação no ambiente externo dos Estados toma o nome de globalização: envolve a abertura da economia política de um país à entrada de produtos, empresas, fluxos e operadores financeiros dos países centrais, tornando a política governamental dependente dos acontecimentos e decisões tomadas em Washington, Nova York e outros importantes centros capitalistas” (p. 9-10).

O autor lembra que tanto a globalização como o neoliberalismo já estavam em ação antes de 1989-1991, mas “o colapso do Bloco Soviético colocou as elites americanas diante de uma tentação faustiana. Uma porta parecia se abrir para uma perspectiva de poder cosmopolita até então inimaginável” (p. 12). Para aproveitar a oportunidade que se apresentou, os Estados Unidos utilizaram a posição de que dispunham no sistema monetário internacional, gradualmente construída desde que Nixon decretou a inconvertibilidade do dólar em ouro, em agosto de 1971. Gowan destaca que esse sistema, que ele chama de “regime dólar-Wall Street”, “funcionou tanto como um ‘regime econômico’ internacional quanto como um instrumento potencial de política econômica e de política do poder” (p. 25).

Assim, nos anos 1990, o governo Clinton procurou ativamente radicalizar e generalizar a globalização e a aplicação das políticas neoliberais, “articulando-as de modo a ancorarem outras políticas econômicas aos interesses políticos e econômicos americanos. Este processo de ancoragem foi buscado tanto bilateralmente quanto por meio da reorganização dos programas das organizações multilaterais, de modo que elas também se tornassem instrumentos da campanha. Essas mudanças nas ligações internas e externas dos Estados são consolidadas em um novo regime, que em contrapartida tende a fazer com que as lideranças governamentais queiram aquilo que as elites governamentais e empresariais americanas querem. Por outro lado, o projeto envolve a garantia de que sejam os próprios países a assumir a completa responsabilidade por o que quer que aconteça às suas populações. Desta forma, os benefícios da ordem global internacional caberão aos Estados Unidos, enquanto os riscos e os custos podem ser distribuídos por outros países. Esta é a principal feição característica do projeto global dos Estados Unidos. Esta é a roleta global” (p. 10-11).

Ao contrário dos que afirmam que a globalização decorre de mudanças econômicas e tecnológicas, temos aí, antes de tudo, uma política do Estado norte-americano, a imposição do “regime dólar-Wall Street”, que produz “uma instabilidade financeira crônica e gera sistematicamente rupturas econômicas nas economias mais vulneráveis e sensíveis” (p. 12). Nascido como resposta de Washington à estagnação em que mergulharam as economias dos países centrais nos anos 1970, o regime que emergiu da quebra do sistema de Bretton Woods era parte de uma estratégia para restaurar o domínio dos capitais americanos, desafiados pelos europeus e japoneses, “transformando o sistema monetário internacional em um regime de padrão dólar” (p.45). Mas logo esta iniciativa transformava-se em um sistema de drenagem de riquezas dos países do Sul para os do Atlântico Norte.

Após descrever a formação desse sistema nos capítulos 2 e 3 de seu livro, Gowan analisa detidamente, no capítulo 4, a evolução do regime dólar-Wall Street na década de 1970 à de 1990. Ele rapidamente se estabelece como mecanismo auto-reprodutivo, tanto político como econômico, “dirigido pelas ações conjuntas das administrações dos Estados Unidos através de suas políticas relativas ao dólar e o controle do FMI/Banco Mundial e dos mercados financeiros interna­cionais centrados nos Estados Unidos” (p. 101). Isso envolve pactuações com a Europa e conflitos com o Japão, de modo que o regime “tornou-se cada vez mais um projeto conjunto do capitalismo do Atlântico – Estados Unidos e União Européia – contra o resto do mundo” (p. 193). Isso envolve a geração de conflitos e a modificação da estrutura socioeconômica de todos os países, “conflitos que o regime dólar-Wall Street garante que não aconteçam em um jogo equilibrado: determinados grupos sociais de um país podem explorar o regime em situações de crise, de modo a fortalecer suas posições internas, políticas e sociais” (p. 96).

Detalhando o processo que nós brasileiros vivemos sob os governos Collor e Fernando Henrique, os argentinos sob Menem, os peruanos sob Fujimori etc., o autor mostra como essas modificações geraram “uma crescente convergência internacional no campo da ideo­­logia, cuja mais alta expressão foi o Consenso de Washington. “Não foi a idéia do Consenso de Washington que ensinou as pessoas a transformar as relações sociais; foram as transformações materiais das relações sociais que produziram o poder da idéia do Consenso de Washington. E todo o processo foi conduzido não por um regime paralegal de normas e princí­pios em uma área em questão, mas pelas poderosas forças materiais do dinheiro e das finanças do regime dólar-Wall Street. Tão logo esse regime socioeconômico internacional começou a ruir, assim também ocorreria com o seu reflexo no Consenso de Washington” (p. 97).

O capítulo 5 analisa a política da administração Clinton na gestão do regime dólar-Wall Street. Partindo do inventário dos instrumentos políticos, econômicos, financeiros, militares e ideológicos disponíveis à Washington, Gowan debate a forma como o governo norte-americano enfrentou e enfrenta dois desafios, o monetário-financeiro (a formação do euro como moeda capaz de deslocar o lugar do dólar) e o surgimento de um novo centro produtivo (resultado da simbiose do capitalismo japonês com o centro de crescimento do leste e sudeste da Ásia, única região do mundo com uma acumulação realmente dinâmica). A administração Clinton colocou, então, seu foco estratégico na Ásia e utilizou o regime dólar-Wall Street contra as economias da região.

O sexto capítulo é a análise da crise asiática de 1997-1998, mostrando como os Estados Unidos pressionaram para abrir a economia dos países da Ásia mais vulneráveis aos movimentos de capitais, a Tailândia, a Indonésia e a Coréia do Sul, até mergulhar toda a região em um súbito declínio. O governo Clinton se recusou a estabilizar os sistemas financeiros e as moedas e manteve o FMI em uma coleira e ainda desmontou, com o apoio dos governos europeus, uma proposta japonesa (com apoio chinês) de criação de um Fundo Monetário Asiático. A intervenção dos Estados Unidos no caso da Coréia do Sul foi particularmente reveladora: sob a tutela direta do Departamento do Tesouro, o FMI impôs um programa de reestruturação do capitalismo coreano, visando eliminar o “dirigismo estatal” e liberalizar sistematicamente sua economia. Ele foi só parcialmente bem-sucedido, e teve de ser afinal abandonado quando a crise contaminou toda a região e se espalhou para a Rússia e a América Latina. Mas o revelador é como “o governo dos Estados Unidos procurou utilizar o pânico dos mercados, lidando com a moeda coreana e a dívida como uma alavanca política para favorecer seus objetivos políticos na Coréia” (p. 173).

Essa descrição sumária dos temas tratados não faz jus à riqueza da análise e das informações fornecidas por Gowan. Mas, quando chegamos ao capítulo 7, já está plenamente comprovada a afirmação de que os objetivos dos Estados Unidos e da Europa na liberalização econômica restringiam-se a “obter o direito de abrir qualquer economia que quisessem e de utilizar tratados multilaterais como base para impor um cerco a qualquer política econômica cujo governo estivesse tentando proteger os ativos contra a captura pelos poderosos grupos capitalistas do Atlântico”. Da mesma forma, a idéia de que “o principal obstáculo à construção de genuínos órgãos de um governo global está nos próprios países mais poderosos. São eles que têm mais a perder com esse desenvolvimento, porque atualmente controlam essas organizações multilaterais com o objetivo de favorecer seu próprio poder e seus interesses. E todo o sistema do FMI/Banco Mundial é programado para transferir os custos das jogadas de poder do mundo do Atlântico para a maior parte da humanidade, que vive no Sul” (p. 194).

O que se passou com a crise das bolsas norte-americanas em 2000, o colapso da Argentina em 2001 e a recente confrontação Norte-Sul na reunião de Cancún da OMC ganham uma nova inteligibilidade à luz do esquema analítico desenvolvido por Peter Gowan.

Mas “O jogo da globalização” é apenas a primeira parte do livro. As duzentas páginas seguintes são dedicadas a “A política no período da globalização”. O espaço não permite aqui acompanharmos sua análise, em grande medida dirigida à disputa entre os Estados Unidos e a União Européia pelo Leste Europeu. Dos cinco capítulos desta parte, já publicados como artigos na New Left Review e na Labour Focus on Eastern Europe, quatro abordam o tema: “A teoria e a prática do neoliberalismo para o Leste Europeu”, “Neoliberalismo e sociedade civil”, “Os partidos pós-comunistas no Leste” e “A expansão da Otan e da União Européia”.

O capítulo 8, entretanto, é uma interessante análise sobre “A Guerra do Golfo, o Iraque e o liberalismo ocidental”.

Claro que à luz da política unilateralista de Bush filho e dos eventos desde 11 de setembro de 2001, a argumentação de Gowan de que os Estados Unidos têm por objetivo de sua política externa estabelecer uma dominação absoluta do mundo só ganhou credibilidade.

José Corrêa Leite é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate