Estante

Capa Utopia DesarmadaCom o fim da Guerra Fria, a esquerda latino-americana ganhou uma vantagem e um desafio. A vantagem é que sua ascensão ao poder não pode mais ser interpretada como uma ameaça aos Estados Unidos - a eterna justificativa para as intervenções. O desafio é que, semi o Tio Sam como inimigo principal, a esquerda já não tem desculpa para o fracasso. No governo, será julgada pelos próprios méritos, na tarefa que é sua razão de existir: atender às profundas demandas de mudança social comuns a todos os países da América Latina.

Esta é a linha-mestra de um livro fundamental: A Utopia Desarmada, do economista mexicano Jorge Castañeda (Companhia das Letras). Para Castañeda, a queda das ditaduras do Leste Europeu, acompanhada pela derrota sandinista e pela agonia cubana, põe fim a uma idéia de revolução que tem seu paradigma na Rússia de 1917. Mas isso não invalida, segundo ele, o papel da esquerda como um agente de mudanças necessárias e radi cais. A injustiça escandalosa e a exclusão social não desapareceram da América Latina com o fim do campo socialista. Ao contrário, a adoção de políticas neoliberais teve como resultado uma distância ainda maior entre ricos e pobres. Não é de se estranhar que, em lugar de definhar no novo panorama mundial, como imaginavam as elites conservadoras, a esquerda latino-americana reapareça agora mais forte do que nunca.

Castañeda vê uma eventual vitória esquerdista nas urnas como conseqüência lógica da democracia. Com a prática repetida de eleições livres, a maioria social - a multidão de pobres e de marginalizados - tende a se tornar também maioria política, elegendo governos que expressem suas aspirações. Foi por isso mesmo, aliás, que a direita suprimiu a democracia nas décadas de 60 e 70. A questão-chave não é chegar ao governo, mas escapar ao dilema que marcou a trágica experiência de Allende no Chile: ou o presidente permanecia fiel ao seu programa e aos setores sociais que o elegeram, ou a resistência às mudanças mergulharia o país no caos. Deu no que deu.

Para superar esse impasse, afirma o autor, um governo comprometido com reformas profundas terá de agru par em torno de si um leque muito mais,amplo do que as forças de esquerda. Não bastam 51% dos votos, o máximo que a Unidade Popular conseguiu no Chile. Nem mesmo uma insurreição, como na Nicarágua, é suficiente, já que o vasto apoio inicial aos sandinistas murchou com o tempo. É necessário um "novo pacto social", que inclua os milhões de marginalizados, os trabalhadores, boa parte da classe média e uma fatia expressiva do empresariado.

Na sua forma, a proposta lembra a velha estratégia comunista das frentes populares, mas o conteúdo é totalmente diferente. Não se trata de atrair um punhado de burgueses desavisados para depois expropriá-los na primeira curva do caminho. Mesmo sem aderir aos valores do capitalismo, a esquerda reconhece a inviabilidade do extinto modelo socialista e aceita - "sinceramente", enfatiza o autor - a lógica da economia de mercado. Seu horizonte é explicitamente reformista: a redução das desigualdades e a construção de um estado de bem-estar social, à européia, através da transferência de recursos (via impostos) e de poder dos ricos para os pobres.

A classe média terá de sacrificar um pouco de seu padrão de vida primeiro-mundista. Ganhará, em troca, um país mais decente, menos violento. O empresariado fará concessões ainda maiores, mas no final pode até lucrar, com a retomada do crescimento e a ampliação do mercado interno. Para Castañeda, o reformismo será viável se as elites perceberem que a alternativa é bem pior. O perigo, para as minorias privilegiadas, não é mais a revolução, mas a desagregação social que já está pipocando sob variadas formas - Sendero Luminoso no Peru, arrastões no Rio, drogas na Colômbia.

Castañeda lança mão de um paradoxo interessante: o fim da Guerra Fria, ao mesmo tempo em que assinala o triunfo da economia de mercado sobre a centralização estatal, traz à tona as diferenças entre os vários tipos de economia de mercado existentes. O autor rejeita o modelo "extremista" de livre-mercado em vigor nos países anglo-saxões, vendido ao resto do mundo como o único capitalismo possível. Em vez de cultuar Reagan e Thatcher, diz, a América Latina deve mirar-se no exemplo da social-democracia alemã, que conseguiu utilizar com sucesso o Estado para corrigir os defeitos do mercado. Outro modelo a ser estudado é a parceria entre empresas e Estado adotada no Japão e na Coréia do Sul para promover o crescimento e a conquista de mercados no exterior.

A proposta social-democrata de Castañeda nada tem em comum com a adesão envergonhada ao neoliberalismo dos nossos tucanos. O intelectual mexicano condena a privatização sem critério, a balela do "Estado mínimo", a integração internacional a qualquer custo. Seu livro é muito mais do que um ensaio político. É também um esboço de programa e ainda uma obra jornalística de primeira qualidade, que reconstitui a trajetória da esquerda latino-americana nas últimas décadas e ilumina, com informações inéditas, questões obscuras como o apoio cubano às guerrilhas no continente.

Para quem discordar do livro (e não serão poucos), não faltarão brechas a serem exploradas. Castañeda, possivelmente, aposta demasiadas fichas no "interesse concreto" dos Estados Unidos e dos demais países ricos nas reformas sociais na América Latina, o que os levaria a cooperar e fazer sacrifícios. Quanto à sua proposta de coligação, ele próprio observa que é muito mais fácil formular um programa alternativo do que construir uma aliança que o torne realidade. Um detalhe que chama a atenção é a referência a FHC como um dos expoentes da esquerda brasileira, ao lado de Lula e de Brizola. O autor, provavelmente, baseou-se no passado do personagem e na polarização política no segundo turno de 1989. Um reto que nesse ponto não iria mal.

Igor Fuser é jornalista.