Estante

A Venezuela que se inventaDesde sua emergência como protagonista da vida política venezuelana, Hugo Chávez Frias tem provocado urticárias e calafrios em certos setores da esquerda tradicional. Para alguns, sua origem militar é um álibi ao preconceito e à pouca disposição de estudar a experiência por ele comandada. Para outros, o papel seminal da idéia de ruptura em sua trajetória é uma inequívoca prova de que se encontra desatualizado em relação aos ares que bafejam as searas pretensamente mais modernas do mundo progressista. Há mesmo correntes de origem socialista que não hesitaram em se somar ao esforço golpista impulsionado pelo Departamento de Estado norte-americano.

Deixemos de lado, no entanto, os personagens que já escolheram um lado na renhida batalha que, de alto a baixo, divide a Venezuela. De fato, muitos dos que se reconhecem confusos sobre o processo alcunhado bolivariano padecem do limitado fluxo de informação sobre os acontecimentos em Caracas. A estes principalmente se destina um livro recentemente lançado pela Editora Fundação Perseu Abramo, intitulado A Venezuela Que se Inventa e escrito por Gilberto Maringoni. Sua leitura é obrigatória, além de prazerosa, para quem não deseja tratar do assunto juntando-se ao coro dos urubus ou fazendo cara de conteúdo.

O ensaio-reportagem de Maringoni está dividido em três partes. Na primeira, depois de resgatar os fatos relacionados ao golpe de Estado de 2002 e ao espetacular retorno de Chávez ao poder, analisa a natureza de seu governo, as políticas com as quais está comprometido e os interesses sociais aos quais se vincula. Na segunda, traz um amplo traçado da história venezuelana recente, especialmente na etapa seguinte à ditadura militar de Perez Jimenez, derrotada em 1958; ali estão retratados a gênese do processo em curso, o apogeu e a decadência dos partidos oligárquicos, a falência do modelo liberal-petroleiro, a irrupção popular no teatro político. Por fim, na terceira parte, o livro aborda, retomando o fio da meada golpista, rumos e opções do chavismo, desenhados a partir de uma situação histórica concreta e de uma nova correlação de forças que foi sendo construída desde fevereiro de 1999, quando o atual presidente assumiu as funções de governo.

Maringoni se sai bem no combate aos mitos negativos que rondam Chávez e seus companheiros. Antes de qualquer coisa, desfaz a imagem de um militar golpista segurando as rédeas de mais uma aventura nacionalista neste continente eternamente conflagrado. O livro revela o papel histórico das Forças Armadas, da incursão libertadora de Simon Bolívar às dissidências que se incorporaram ao movimento guerrilheiro nos anos 1960, da campanha antiescravista à associação com os setores populares que almejavam derrubar o velho sistema político da partitocracia petroleira.

Capítulo a capítulo, deixa evidente que os militares progressistas – tais quais os capitães de abril em Portugal e os tenentes brasileiros – foram ocupando espaço como vetor da resistência social, estabelecendo conexões com o mundo civil, articulando uma alternativa de poder. A própria crise da esquerda venezuelana, marcada por fenômenos de isolamento e domesticação, provocou a transferência de seu centro de gravidade, dos partidos alquebrados para a aliança entre os quartéis e as ruas.

O repertório apresentado pelo livro também oferece elementos para que se compreenda a relação entre mudança e democracia na experiência venezuelana. Ao contrário do que alardeia a propaganda conservadora, talvez não haja país neste planeta que tenha ido tão longe na cartilha da democracia representativa. O novo modelo começou a nascer em um processo eleitoral e cada passo dado foi chancelado pelo crivo das urnas. Os meios de comunicação, apesar de seu comprometimento estratégico com o golpismo e a sabotagem, mantiveram-se intocados. Os partidos e grupos de oposição atuam com liberdade até temerária – por exemplo, não há um só preso pelo golpe de 2002, ainda que seja de conhecimento público e notório quem são os gatunos da Constituição.

O que desorienta a oligarquia venezuelana e seus aliados internacionais, porém, é que Chávez operou com instrumentos da democracia liberal para espatifar a influência política dos antigos estamentos dirigentes e começar a longa marcha na construção de um novo poder, com fortes ingredientes de democracia direta e controle social. As correntes plutocráticas foram sendo despejadas do comando das instituições. Desesperadas, recorreram à insurgência, mas as frações militares sob sua influência acabaram decapitadas. Reagruparam-se, então, na trincheira petroleira, pois mantinham sob seu comando, até o início de 2003, a poderosa PDVSA. Por quase dois meses paralisaram a indústria do ouro negro, quase levando o país à ruína. Chávez não cedeu, o governo assumiu o controle da empresa e colocou no olho da rua os funcionários que estavam sob a batuta do conservadorismo. Estes são alguns dos acontecimentos que Maringoni relata e analisa, com apurado levantamento jornalístico, para concluir que os de cima vivem uma crise política terminal, restritos à sua capacidade midiática e à política de intervenção que os Estados Unidos parecem implementar.

A sociedade treme e se divide porque vive uma situação de troca da hegemonia, na qual agonizam as velhas classes dominantes e avançam novos grupos políticos e sociais, de base popular e trabalhadora. A via é pacífica, mas armada, pois o chavismo aparentemente controla as Forças Armadas. Vive-se na Venezuela, é fato, uma política anticíclica. Em outras plagas, forças de esquerda continuam descrentes de uma alternativa contra-hegemônica, por doutrina ou circunstância, e se limitam a alternâncias de governo sem arriscar rupturas de modelo ou sistema. Não é a trilha liderada por Hugo Chávez, que fez de um núcleo militar progressista a plataforma de um poderoso movimento eleitoral, investiu na intensificação das lutas sociais e preparou suas tropas para uma batalha de tudo ou nada contra os seculares mandarins de seu país. Quem viver verá.

Maringoni fez sua lição de casa: trouxe aos leitores um painel amplo e detalhado desse processo. Quem termina de ler seu livro em geral suspira e se dá conta de que há um outro caminho possível.

Breno Altman é jornalista