Estante

Ana em VenezaDesde que publicou seu primeiro livro, há quase vinte anos, João Silvério Trevisan caracterizou-se por um tipo de ficção permeada pela reflexão, com um estilo que aproxima a literatura da ensaística. Um estilo que evidencia uma vontade de dizer coisas, que extravasa qualquer contenção ficcionista.

Em Ana em Veneza, os personagens prestam-se especialmente à reflexão: Júlia, a mãe de Thomas Mann, nascida no Brasil, de pais alemães, mas cujas raízes não resistiram ao exílio; Ana, sua empregada negra, desarraigada de sua segunda pátria, a Europa; e Alberto Nepomuceno, o músico cearense com raízes nativas na sua obra, mas que viveu e estudou na Itália e na Alemanha.

Centrado em Parati, na sua primeira parte, e em Veneza, na segunda, o livro tem a pretensão de fazer uma profunda reflexão sobre as relações entre a cultura e a história do Brasil e da Europa, no tom em que ela podia ser encarada no final do século passado. Porém, valendo-se da ficção, Trevisan localiza o texto entre duas entrevistas de Nepomuceno, no início e no final do livro, uma da época em que o músico realmente viveu e a outra, contemporânea, com referências a Caetano Veloso, Sônia Braga, Chico Buarque e Fernando Collor.

É evidente a identificação de Trevisan com Nepomuceno, os outros personagens servindo para corporificar situações que detalham melhor os termos em que ele coloca os dilemas da época (daquela e da nossa). Mesmo um Thomas Mann que corre de um lado para outro - imagem muito próxima do Tadzio de A morte em Veneza -, vale apenas para reforçar a presença de sua mãe, com toda sua ambigüidade cultural e psicológica em relação ao Brasil.

O livro flui de maneira desigual, ao longo de suas quase 600 páginas. Quando as reflexões - que lembram, às vezes, o tom de Contraponto de Huxley - se articulam devidamente com as situações vividas por Nepomuceno ou por Ana, elas têm mais interesse. Porém, em certos momentos, a vontade de descarregar voluptosamente uma série de juízos sobre o país toma demasiado densa a discussão ou, então, pouco criativa.

Um exemplo está em afirmações atribuídas, na entrevista do final do livro, a Nepomuceno: "Se você quiser saber, o mais assustador no Brasil de hoje é o papel da mídia. Num país de milhões de analfabetos, um pequeno grupo se apossa das informações e as manipula de modo vergonhoso. Jovens filhos da elite arranjam na Universidade um diploma que é seu passaporte para o poder, invadem as redações, ostentando eternos 26 anos de idade de arrogância, e corroem tudo com seu niilismo generalizado. Tentam compensar sua emasculação e impotência pelo exercício do poder. Não em Brasília, nem nos bancos, nem nas mansões. Mas nas redações." Não menos verdadeiro quanto pouco sutil literariamente.

Para uma literatura que necessita multiplicar-se, apropriar-se de nossa história e de nossa cultura, ganhar espaços, ajudar o país a afirmar contraditoriamente sua identidade, suas angústias e seus dilemas, o livro de Trevisan é inegavelmente uma boa contribuição. Exatamente por querer preencher, na medida de suas possibilidades, esses vazios, com o ímpeto de quem os vive à flor da pele.

Emir Sader é membro do Conselho de Redação de T&D.